Com A Pública
De colete preto e calça verde-escura no estilo militar, um homem de cerca de 40 anos perambulava em frente ao estádio do Pacaembu, em São Paulo, ao redor de um grupo de entregadores que protestava contra as condições de trabalho dos aplicativos de delivery, no dia 16 de abril de 2021. Carregando uma faixa de cerca de 3 metros, o homem exibia dois adesivos que pediam “vacina pros entregadores de aplicativo já”: um colado no boné, outro no face shield. Nas mãos, carregava pacotes com adesivos iguais para distribuir na manifestação. Parecia ser um entregador que levava suas reivindicações para o movimento. Mas, de acordo com a apuração da reportagem, não era.
Documentos, fotos e relatos obtidos pela Agência Pública indicam que o homem seria um funcionário de uma agência de inteligência e monitoramento digital que prestava serviços em uma campanha contratada pelo iFood. A presença do funcionário teria como objetivo implantar a pauta da vacinação prioritária para motofretistas, como uma estratégia de esvaziamento da narrativa de greve — indicam as fontes ouvidas e relatórios consultados com exclusividade pela reportagem. Durante o ato, o homem dos adesivos divulgou um abaixo-assinado que pedia a vacinação prioritária. A petição online havia sido criada sete dias antes pela equipe da agência de publicidade que o contratou.
Naquele abril de 2021, os adesivos e a faixa que pediam “vacinação já” no estádio do Pacaembu, na zona oeste de São Paulo, vieram acompanhados pela disseminação de posts e comentários de usuários falsos, que teriam sido criados por agências de publicidade a serviço do iFood no Twitter e Facebook. Em paralelo, as agências contratadas teriam criado duas páginas que deram suporte à narrativa: a fanpage de conteúdo político Não Breca Meu Trampo e a página de memes Garfo na Caveira.
A Pública acessou mais de 30 documentos das campanhas — entre relatórios de entrega, cronograma de postagens, vídeos, atas de reuniões e trocas de mensagens —, além de conversar com pessoas que trabalharam nas agências e acompanharam a campanha desenvolvida para o iFood durante pelo menos 12 meses. As pessoas entrevistadas serão mantidas em anonimato nesta reportagem por temerem represálias profissionais após a publicação da denúncia.
Marketing 4.0: “para que ninguém desconfie”
A situação, descreve uma das fontes que afirma ter trabalhado nas campanhas contratadas pelo iFood, “é o que chamam de marketing 4.0”. “Você posta memes, piadas e vídeos que promovem uma marca ou ideia, mas sem mostrar quem está por trás. Sem assinar”, explica. “É aquele tipo de conteúdo que te deixa em dúvida: você não sabe se foi um meme, uma coisa que surgiu na internet ou se teve alguém por trás”.
Segundo os relatos, o objetivo da publicidade não assinada era disseminar ideias e opiniões em um formato que imitasse a forma dos entregadores de se comunicarem, simulando que as postagens e narrativas vinham de verdadeiros entregadores. Um documento acessado pela reportagem descreve: “Toda vez que trabalhamos com o iFood criamos estratégias para o ‘LADO B’. Essas estratégias têm como objetivo criar um leve rumor nas redes sociais sobre o assunto que queremos abordar no momento”.
O documento, que seria usado como guia pelas agências de publicidade, explica a tática: “Usamos Páginas de Facebook, Perfis do Instagram, Perfis de Twitter, Perfis de Facebook, criados por nós para gerar esses rumores. Como? Comentamos em publicações que falam do assunto, vamos em perfis que abordam o assunto e comentamos de forma indireta […], mas NUNCA assinado como iFood para que ninguém desconfie”.
“O modelo era o de propaganda lado B. Tipo o que o Bolsonaro faz com o gabinete do ódio, mas que as agências já fazem há muito tempo”, diz uma das fontes. No universo da propaganda política, esse tipo de ação é comum, explicou uma especialista ouvida pela reportagem. “O lado B é uma prática de campanha política, eles sempre fazem. Toda campanha grande tem uma equipe lado B que basicamente faz conteúdo sobre um inimigo. Sempre sem assinar.”
O conjunto de documentos e os relatos indicam que, entre julho de 2020 e, ao menos, novembro de 2021, a agência Benjamim Comunicação e depois também a agência Social Qi (SQi) monitoraram greves de entregadores. A documentação indica que até, pelo menos outubro de 2021, as agências teriam produzido conteúdo para redes sociais e feito campanha pela vacinação prioritária dos motofretistas a serviço da empresa de delivery.
O início: nasce uma página para desmobilizar entregadores
No dia 1o de julho de 2020, entregadores de aplicativos paralisaram as atividades em 13 estados do país e no Distrito Federal, em uma mobilização nacional que ficou conhecida como o primeiro grande “Breque dos Apps”. Com a greve, os entregadores reivindicavam aumento no valor pago por entrega, medidas de proteção contra a covid-19 e melhores condições de trabalho.
Durante aquele dia, comentários sobre a paralisação inundaram as redes sociais e o “Breque” foi o assunto mais falado no Twitter durante cinco horas. Com mobilização online e nas ruas, a greve se estendeu de manhã até o final da tarde, simultaneamente em capitais e cidades do interior.
À noite, poucas horas depois do “Breque”, o iFood lançou uma carta e um site para rebater críticas, divulgando em horário nobre da TV aberta um anúncio que destacava que a empresa “oferece seguro contra acidentes pessoais e que a maioria [dos entregadores] valoriza o fato de ter flexibilidade de horário e liberdade para compor sua renda”. Começava ali uma campanha da empresa contra as manifestações dos entregadores.
Com a visibilidade alcançada pela greve, a estratégia de comunicação do iFood não se limitaria a comerciais na TV que defendessem a reputação da empresa. Oito dias após o “Breque dos Apps” foi criada a página Não Breca Meu Trampo no Facebook. “O objetivo era suavizar o impacto das greves e desnortear a mobilização dos entregadores”, explicou à reportagem uma pessoa que afirma ter acompanhado o trabalho desenvolvido pelas agências de publicidade.
A descrição da página dizia: “A gente quer melhorar de vida e ganhar mais. SEM patrão e salário mínimo. No corre bem feito a gente tira mais e não tem chefe pra encher o saco. A gente quer liberdade pra trampar pra quem a gente quiser!”
Quando a “Não Breca Meu Trampo” apareceu nas redes, um alerta acendeu na cabeça de entregadores que acompanhavam as mobilizações. “A gente suspeitava que era um conteúdo pago por empresa, porque veio do nada e cheio de postagem, mas ficava no boato”, conta Edgar Silva, presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil (AMA-BR). Paulo Lima, o Galo do Movimento dos Entregadores Antifascistas, lembra que assim que a página surgiu “os motoboys vieram trazer pra mim perguntando quem será que estaria por trás”. Galo conta que as suspeitas sobre a autoria da página cresceram, mas ninguém tinha evidências que comprovassem quem estaria por trás da “Não Breca Meu Trampo”.
Quando a “Não Breca Meu Trampo” foi criada, um grupo com o mesmo nome foi aberto por Moriael Paiva, também no Facebook. Marqueteiro conhecido no universo da propaganda política, Paiva coordenou as campanhas de Gilberto Kassab em 2008 e José Serra em 2010. Em seu perfil no LinkedIn, descreve-se como consultor em gestão de crise e posicionamento digital.
“A gente matou o Galo”
Um vídeo obtido pela Pública mostra publicitários da Benjamim Comunicação falando da criação da página. Adriana Souza, sócia da agência, rememora no vídeo durante uma reunião no dia 7 de julho de 2021: “A gente, quando fez essa página, tinha uma situação emergencial para resolver”. E afirma: “O próprio manifesto da Não Breca [Meu Trampo] é um pouco mais aberto. A gente, quando fez, não queria uma identificação tão rápida”.
https://youtu.be/urS-GYtFWuc