PUBLICADO EM 02 de mar de 2022
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A faceta desestabilizadora dos EUA na crise russo-ucraniana

O então presidente Bill Clinton (centro) na cerimônia de assinatura da expansão da OTAN, realizada na Casa Branca, em Washington, D.C., em 21 de maio de 1998.

Por Robson Coelho Cardoch Valdez

A tensão nas fronteiras russo-ucranianas lança luz sobre uma temática mais complexa do que a difícil situação desencadeada pela deliberada decisão dos Estados Unidos de expandir os tentáculos militares da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em direção aos países da Europa Central e Oriental. Trata-se de um momento crucial para o sistema internacional, no qual o que se discute é, na verdade, a atual distribuição do poder entre os principais atores desse sistema.

Nesse sentido, é impossível não observar esses acontecimentos sem mencionar as causas profundas dessa e de outras crises trazidas pelos quadros interpretativos do cientista político Luiz Alberto Muniz Bandeira em sua obra A Desordem Mundial (Editora Civilização Brasileira, 2016). Sem sombra de dúvida, trata-se de leitura fundamental para tentar entender a faceta desestabilizadora dos Estados Unidos no mundo, a partir do colapso da União Soviética.

A comunidade internacional acompanha, hoje, o que foi previsto por muitos auxiliares, assessores políticos e militares norte-americanos que, em 1995, alertavam o então presidente Bill Clinton sobre os perigos relacionados à sua decisão de dar início à expansão da OTAN em direção às fronteiras russas por meio da cooptação dos países pertencentes ao antigo bloco soviético.

Theodore Sorensen, ex-assessor de J. F. Kennedy ressaltou, em artigo no jornal The Washington Post, que decisão tão apressada e precipitada não poderia parecer mais “provocativa” e “sem total consideração pelas consequências”. Naquele momento, era evidente que o expansionismo da OTAN promovido pelo governo norte-americano contrariava compromissos assumidos entre Mikhail Gorbachev e o presidente George H. W. Bush quando se discutiu a reunificação da Alemanha.

Da mesma Forma, George Frost Kennan – embaixador americano e ideólogo da doutrina de contenção da União Soviética durante a Guerra Fria – mostrou-se radicalmente contrário à expansão da OTAN em direção à Rússia, classificando esse movimento como um “erro estratégico de proporções potencialmente épicas”. À época, em fevereiro de 1997, Kennan alertou, na forma de uma quase profecia, ao escrever no jornal The New York Times: “expandir a OTAN seria o erro mais fatídico da política americana em toda era Pós-Guerra Fria”. Um ano mais tarde, após a ratificação da expansão da OTAN no Senado norte-americano, as sábias palavras de Kennan nos fazem refletir sobre nossa atual situação: “Acho que é o começo de uma nova guerra fria”, […] “Acho que os russos gradualmente reagirão de forma bastante adversa, e isso afetará suas políticas. Acho um erro trágico”.

De fato, os russos vêm reagindo ao expansionismo militar dos Estados Unidos, por meio da OTAN, em direção às fronteiras russas. É importante ter em mente que a OTAN (bem como FMI, Banco Mundial, OEA etc.) opera em convergência com os interesses da política externa norte-americana. Nesse contexto, vale relembrar as palavras de um dos mais influentes formuladores da política externa norte-americana, Henry Kissinger ao afirmar que “… os Estados Unidos transformaram a Aliança Atlântica, estabelecida como coalizão política, em uma organização militarmente integrada e liderada por um comandante supremo americano”. Este trecho foi retirado da página 491 do clássico Diplomacy (Simon & Schuster Paperbacks, 1994).

Assim, tanto o cerco da OTAN à Rússia a partir da adesão, entre 2001 e 2004, de Eslovênia, Eslováquia, Bulgária, Romênia, Estônia, Lituânia e Letônia; bem como a resposta dos russos à essa estratégia (Georgia 2008 e Crimeia 2014) se enquadram no pior cenário previsto pelos experientes integrantes da elite acadêmica e política dedicada aos estudos e análises do intrincado processo decisório da política externa dos Estados Unidos.

A questão russo-ucraniana, como se vê, apresenta-se, hoje, não como um suposto revisionismo histórico do papel dos russos no cenário internacional, mas sim como uma questão securitária não resolvida entre os dois maiores arsenais nucleares do planeta. Assim, ao não dar ouvidos aos mais experientes articuladores da política externa americana no período da Guerra Fria, é a administração Biden, desgastada desde a retirada das tropas americanas do Afeganistão, que se vê chamada a se posicionar frente aos movimentos da Rússia e frente aos seus aliados europeus. Esses últimos parecem ainda indecisos em relação aos desejos de uma Europa totalmente unificada, ou de uma Europa parcialmente integrada aos moldes das antigas esferas de influência russa e americana.

Adicionalmente, a China, aliada estratégica dos russos em várias agendas internacionais, observa com atenção e interesse o posicionamento dos Estados Unidos que, como é sabido, tem-se colocado como defensor da integridade territorial de Taiwan por meio de sua política de ambiguidade estratégica frente o desejo chinês de consumar a anexação total desse conjunto de ilhas ao controle soberano por parte de Pequim. A mensagem dos americanos aos russos repercutirá junto à dinâmica geopolítica no Mar do Sul da China.

Na crise russo-ucraniana, a China observa com atenção os movimentos dos EUA. Na imagem, o presidente chinês, Xi Jinping

Como se observa, os Estados Unidos, por conta de seu expansionismo militar irresponsável, encontram-se em situação desconfortável qualquer que seja a decisão que venham a tomar, pois pode representar uma derrota total ou, na melhor das hipóteses, uma derrota parcial para o país. Reparem!

Por um lado, qualquer solução diplomática que represente, em alguma medida, acomodação de demandas russas em relação à Ucrânia e a OTAN, será vista como uma vitória de Putin em várias dimensões e um sério desgaste político para a imagem internacional dos Estados Unidos como liderança internacional. Por outro, uma abordagem conflitiva poderia, no limite, lançar os países em um confronto de proporções inimagináveis, haja visto os vários estudos climatológicos que mostram que mesmo uma “pequena” guerra nuclear (apenas 1% dos arsenais dos EUA e da Rússia) “incluiria perturbações catastróficas do clima global e destruição maciça da camada protetora de ozônio da Terra. Esses e estudos mais recentes preveem que a agricultura global seria tão negativamente afetada por tal guerra, que resultaria em uma fome global, o que faria com que até 2 bilhões de pessoas morressem de fome”.

A comunidade internacional acompanha, apreensiva, o desfecho da crise russo-ucraniana sem se dar conta de que se trata, na verdade, de um acerto de contas que há muito tempo os Estados Unidos negligenciaram. Essa conta chegou.

Robson Coelho Cardoch Valdez é pós-doutorando em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (IREL/UnB), doutor em Estudos Estratégicos Internacionais (UFRGS) e pesquisador do Núcleo de Estudos Latino-Americanos/IREL-UnB. Autor dos livros Política Externa e a Inserção Internacional do BNDES no Governo Lula (Appris, 2019) e Subindo a Escada – a internacionalização de empresas nacionais no Governo Lula (Appris, 2019).

Fonte: Observatório Político

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