A entrega de cerca de 400 mil títulos de terra para famílias agricultoras assentadas está em destaque na propaganda de Jair Bolsonaro (PL) pela reeleição presidencial. O tema se repete em ações de campanha, eventos midiáticos, peças publicitárias e discussões no Whatsapp e no Telegram.
“Para pacificar o campo”, afirmou Bolsonaro em coletiva prévia ao segundo turno, “titulamos mais de 420 mil assentados. Onde tinha foco do MST, deixamos fora com a titulação. Mais ainda, essas pessoas se transformaram em agricultores familiares de verdade”.
O fato, no entanto, é falso. Não só porque o número a que o presidente se refere é, na realidade, 370 mil, conforme dados do Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária (Sipra), do próprio governo federal, obtidos pelo Brasil de Fato. O número inflado veiculado pelo presidente inclui áreas públicas regularizadas que não são voltadas para assentados.
Mas porque 88% dos registros expedidos pelo governo federal não são títulos definitivos. Além disso, a maioria dos documentos foram entregues a pessoas assentadas em governo anteriores e são, na realidade, apenas a renovação deste registro. Das cerca de 1,3 milhão de famílias assentadas hoje no país, apenas nove mil alcançaram essa condição durante a gestão atual.
Estes são alguns dos motivos pelos quais agricultores, pesquisadores e ativistas classificam a política fundiária de Bolsonaro como uma contrarreforma agrária. Entenda porquê.
Só 12% dos títulos entregues por Bolsonaro são definitivos
A propaganda de Bolsonaro induz à ideia equivocada de que ele teria emitido cerca de 400 mil documentos dando, de forma definitiva, a propriedade daquela terra às famílias. Isso não é verdade.
No Brasil, existem dois tipos de títulos definitivos para beneficiários da reforma agrária. São eles o Título de Domínio (TD) e a Concessão de Direito de Real de Uso (CDRU). O primeiro dá ao assentado a propriedade daquela terra, mas ele tem de pagar por ela. Feito o pagamento, depois de seis meses ele tem permissão para vender o lote.
O segundo é gratuito: a terra segue sendo do Estado, mas o título dá o direito definitivo ao uso dela por parte daquela família, incluindo as gerações seguintes. Nessa modalidade, a terra não pode ser vendida.
Dos documentos emitidos pelo governo Bolsonaro, a esmagadora maioria não é nem um, nem outro. Segundo o próprio Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), apenas 12% são títulos definitivos. O resto são registros provisórios, os chamados Contrato de Concessão de Uso (CCU), que apenas informam que existe um vínculo da família camponesa com o Incra.
“Se a pessoa é beneficiária da reforma agrária, ela tem uma documentação básica de assentada, um comprovante que ela participa dessa política pública”, explica Kelli Mafort, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “A CCU é este documento básico, uma espécie de RG dos assentados. Um documento administrativo, mas que não tem nenhum valor em cartório. Portanto, não é um título definitivo”, expõe.
Número de famílias assentadas no governo Bolsonaro é pífio
Estes registros provisórios entregues por Bolsonaro tampouco são uma política pública por ele inventada, mas uma obrigação básica determinada pela Lei nº 8.629/1993. Segundo o prazo de cinco anos previsto pela legislação, o Incra precisava renovar os CCUs que já haviam sido entregues até março de 2018.
A imensa maioria das famílias cujos documentos o candidato de direita vem usando de forma publicitária, portanto, foram assentadas em governos que o antecederam.
Durante seus dois mandatos, entre 1995 e 2002, Fernando Henrique Cardoso (PSDB) assentou pouco mais de meio milhão de famílias. Nos governos petistas de Lula e Dilma, entre 2003 e 2016, foram 747.777 famílias. Já Bolsonaro, entre 2019 e 2022, alcançou recorde negativo. De acordo com o Incra, apenas 9.228 famílias foram assentadas durante sua gestão.
“Foi o pior governo que nós tivemos em termos de reforma agrária nesse país”, avalia Mafort. “Bolsonaro não tem a coragem de dizer que está entregando título em assentamentos criados por Lula e Dilma”, diz.
Terras da reforma agrária à disposição do mercado
Apesar de Bolsonaro ser o presidente que menos regularizou terras para a reforma agrária, a grande guinada neste número começou com seu antecessor, Michel Temer (PMDB).
Antes dele, a lei previa que títulos definitivos só poderiam ser entregues pelo Incra depois que o governo garantisse políticas de fomento que dessem àquele território autonomia produtiva: infraestrutura, escolas, saneamento, acesso a crédito, assistência técnica, entre outras.
“Isso era feito com o objetivo de justamente evitar que essas terras voltassem rápido ao mercado e gerassem reconcentração fundiária”, aponta Julianna Malerba, assessora nacional da ONG Fase e doutoranda em planejamento urbano e regional pela UFRJ. “A tendência da atual política vai em sentido inverso”, atesta.
Em 2016, Temer aprova a Lei 13.465, que dá ao governo o prazo de 15 anos depois da criação do assentamento para implementar essas políticas. Isso permitiu ao governo Bolsonaro a entrega massiva de documentos de titulação ao mesmo tempo em que paralisou as políticas de fomento à reforma agrária.
“Temos assistido a drásticas reduções orçamentárias no Incra, diminuição do número de seus servidores, suspensão de vistorias e até a desistência de desapropriações”, descreve Julianna.
Na visão de Kelli Mafort, a ausência das políticas voltadas ao campo explicita uma intenção. “Em muitos assentamentos, como aqui no estado de São Paulo”, exemplifica a coordenadora do MST, “o superintendente do Incra, Edson Fernandes, leva junto com ele, ao dar o CCU ou mesmo o TD, representantes de empresas para que arrendem e, futuramente, comprem as terras dos assentados. Estão transformando o Incra num grande balcão de negócios”. Para Kelli, é a “privatização da reforma agrária”.
Imposição de dívida
Mesmo que tenha um título definitivo de terra na mão, sem condições de reprodução econômica naquele assentamento, não são poucos os camponeses que recorrem aos bancos em busca de créditos, acompanhados de altos juros.
A geógrafa Yamila Goldfarb, vice-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), argumenta o quanto o provável endividamento por parte de agricultores interessa “aos bancos, grandes tradings e latifundiários”.
“Fica muito mais fácil, num momento de dificuldade financeira, o agricultor pegar um empréstimo no banco e logo perder seu lote, ou então vendê-lo para um latifundiário que está ali plantando soja, jogando veneno em volta dele e cobiçando a sua terra”, ilustra Yamila.
Programa “Titula Brasil” e a legalização da grilagem
Era dezembro de 2020 quando o governo Bolsonaro instituiu o programa que sintetiza a sua política fundiária. Em portaria assinada pelo presidente do Incra, Geraldo José Melo Filho, e o secretário de Assuntos Fundiários, Nabhan Garcia – ninguém menos que um dos fundadores da União Democrática Ruralista (UDR) –, foi instituído o programa Titula Brasil.
Apelidado por organizações ambientalistas de “Invade Brasil”, ele prevê, por um lado, esta política de titulação de terras propagandeada de forma maquiada na campanha bolsonarista. Por outro, terceiriza aos municípios a regularização fundiária de áreas da União que estejam ocupadas.
“A gente sabe que, no nosso país, povo organizado que ocupa uma terra é despejado imediatamente, mas fazendeiro que compra todo o poder local fica em cima dessa terra aguardando o programa de regularização fundiária”, sintetiza Kelli Mafort, para quem o caminho está facilitado para a regularização de terras griladas por parte de oligarquias rurais, que exercem influências históricas sobre gestores municipais.
“A prioridade da atual política agrária é produzir mais proprietários e menos assentados, com o objetivo de dispor as terras destinadas à reforma agrária ao mercado de terras”, resume a pesquisadora Julianna Malerba. “Além de atender à dinâmica expansionista do agronegócio e da mineração, interessados na incorporação dessas terras ao mercado, essas ações também visam o enfraquecimento dos sujeitos políticos e da luta pela reforma agrária”, acrescenta.
No entanto, finaliza Malerba, “o governo Bolsonaro ignora – porque jamais esteve comprometido com o fortalecimento da organização social no país – que ao promover a reconcentração fundiária mantém a pauta de luta pela terra, que sempre deu sentido ao MST, ainda mais urgente e necessária”.
Fonte: Brasil de Fato | São Paulo (SP)