Hoje completo 47 anos. Meu tempo de vida está atravessado por essa pausa, que todos os anos me convoca a pensar a existência: o dia do aniversário. Reconheço a passagem dos anos nas marcas do meu rosto, na forma como encaro os desafios da vida, nas tantas reconstruções e mudanças de rota que tive de fazer durante esse percurso. Vejo meus pais envelhecidos; meu filho adulto. Eu, nesse hiato entre a juventude que ainda sinto pulsar em mim e a maturidade que se revela nos cabelos brancos que surgem. E vejo minha vida atravessada por tantos tempos. Àqueles da memória, somam-se os tempos por vir. E é sobre eles que quero escrever.
Há uma urgência em recuperar nosso direito ao futuro. Imaginá-lo e ousar desejá-lo, como insiste Eliane Brum. Exigi-lo, a partir de um parâmetro que não encontra lugar no que já vivemos, pois está lá, no futuro. Algo fora do nosso alcance, no qual podemos nos implicar desde já. Um futuro a construir, que Rita Segato chama de fé histórica, quando afirma que “a incerteza é política”. Não é preciso saber o que nos espera. Aliás, como Saramago mostra em seus livros, conhecer o futuro pode ser enlouquecedor. É necessário, porém, atuar contra o que não queremos.
Se estamos realmente exaustos desse tempo acelerado, em que vivemos a pressa do tudo ao mesmo tempo agora, é urgente reduzir o tempo do trabalho obrigatório. Se as relações parecem líquidas, superficiais, é urgente ressignificar o tempo dos afetos. Se é insuportável conviver com pessoas que não têm onde morar ou o que comer, é preciso alterar radicalmente as regras de convívio social e confrontar o inaceitável.
Tempo não é dinheiro, é vida. E a vida se esvai em um segundo. A aceleração do tempo que o imperativo do consumo e da troca nos impõe queima o futuro, junto com nossas florestas. E o futuro não é nosso, é das gerações que ainda não estão por aqui. Ao contrário do que fomos ensinados a pensar, não há tempo linear, nem progresso garantido pela tecnologia que a inteligência humana conseguiu desenvolver. Se em 2022, há fome, miséria, desequilíbrio ambiental, racismo, feminicídio e tantas outras barbáries, é porque um projeto de futuro falhou. Mas existem outros. Basta pensar e falar neles com coragem, porque a palavra já institui a possibilidade da existência material de um outro mundo possível.
Há pouco vivemos a experiência da suspensão do tempo. A pandemia retirou a possibilidade de seguirmos fingindo que somos imortais. Nos impediu até de sepultar nossos mortos. Expôs a falácia do sujeito autônomo. Esse sujeito ficou completamente desamparado. Incapaz de manter suas ilusões. Incapaz de proteger seus afetos, de realizar seu trabalho, de sobreviver. E pôde compreender então que a autonomia não existe.
Somos dependentes. Sem um ambiente saudável, sem pessoas que cuidam, sem remédio, sem natureza, sem ar… não sobrevivemos. Essa suspensão forçada do tempo, alguns diziam, seria a oportunidade para a reflexão e para a construção de uma outra vivência, com qualidade. A ânsia de adoecer, morrer, perder alguém faria com que os sujeitos racionais percebessem o verdadeiro significado da vida e a importância de cuidar, de si e dos outros; de todos os outros. Mas isso não ocorreu.
Ao contrário: corrupção na compra de vacinas; desvio de medicamentos; experimentos monstruosos com remédios ineficazes; deboche e mesmo a discussão acadêmica sobre como punir negacionistas. Lembro que ainda não havia vacina disponível no Brasil, quando participei de um longo debate sobre a possibilidade de despedir trabalhadores por justa causa, caso recusassem a vacinação. A cura ainda não existia, mas a punição já era a resposta. Não a informação, nem o debate sobre o boicote diário de todas as formas de proteção da vida, inclusive essa, e as implicações disso sobre todos nós.
Não a discussão pública honesta e transparente sobre a importância da imunização, nem o incentivo a vacinar. Em seu lugar, a penalidade: a perda do emprego como resposta, em um país de trabalho obrigatório e milhões de miseráveis. A suspensão das temporalidades durante a pandemia também não nos fez reduzir jornadas, questionar a obrigatoriedade do trabalho ou da ordem do consumo que destrói o ambiente. Foi logo substituída astutamente pelo teletrabalho, para quem pôde realizá-lo, sem que se discutissem as implicações na relação tempo x espaço: a violência de gênero potencializada ou o estresse gerado pelo dever de estar em vários lugares ao mesmo tempo.
A pandemia cedeu diante da vacina, da insistência na ciência. Cedeu, apesar do tempo de espera imposto por escolhas políticas que deviam ser outras. Cedeu, apesar do boicote. A possibilidade de aprender e pensar um futuro diverso se apresentou diante de nós. E ainda está aí, apesar dos discursos que insistem em nos fazer olhar para o passado. Mais do que nunca, depois desse tempo suspenso, sabemos a importância dos outros na nossa vida. Vestir-se para sair de casa; mudar de cenário; chegar ao trabalho; conversar; rir; chorar abraçadas. Sentir os cheiros e cores de outros ambientes. Tudo isso são sensações que constroem quem somos, que nos modificam e que permitem que nos impliquemos.
As políticas de morte e de imposição de sofrimento acontecem quando o outro desaparece como parte do que somos e ressurge como inimigo. O convívio amoroso, especialmente em uma sociedade na qual somos ensinados a competir, é o antídoto do individualismo egoísta. Precisamos de gente, de bicho, de verde, de troca de afetos. bell hooks escreveu que falar de amor é um ato revolucionário. Promovê-lo também. Eis um belo sentido para a nossa existência. Compreendê-la como o começo de algo que nos ultrapassa no tempo, cujo significado tem mais a ver com amor do que com propriedade privada, dinheiro, sucesso.
O Brasil vive hoje o tempo suspenso da democracia que nunca experimentou. Quando nasci, havia uma ditadura interditando o futuro. Havia um imperativo de dor, disfarçado pelo lema “pátria, família e propriedade”, que, ao contrário de significar segurança ou afeto, tornava clara a exclusão de todas aquelas pessoas que não se enquadravam no modelo idealizado de sujeito, esse que sequer existe na realidade. A família, a propriedade e a pátria eram privilégio de poucos.
De lá pra cá, muitas vidas foram sacrificadas e outras tantas se dedicaram a registrar a memória desse tempo que não queremos de volta. Hoje, 47 anos depois, nos acenam com a promessa de retorno a esse tempo, em que tantas de nós foram impedidas de existir. É preciso sair desse cativeiro que interdita nosso futuro, sem dúvida. Mas também é urgente saber o que faremos do lado de fora. Um novo tempo é possível. Precisamos ousar imaginá-lo e começar a construí-lo.
Valdete Souto Severo é juíza do trabalho e professora universitária.