As muitas críticas sobre a pauta identitária, na maioria das vezes pertinentes, em minha opinião, são geralmente mal interpretadas. Na baciada de opiniões das redes sociais, uma crítica a algum movimento radical e muito estreito pode ser vista como o oposto do que se quer dizer.
Li agora mesmo uma frase em um artigo sobre a série Round 6 que diz muito sobre essa questão identitária. A frase, no texto de John Wojcik é: “Nós vemos que os jogadores saem na frente quando cooperam ao invés de se engajar na competição pretendida pela classe dominante”. Vejo a pauta identitária como “a competição pretendida pela classe dominante” que leva os jogadores (da série) à morte. E a política e os movimentos tradicionais da esquerda como a cooperação entre os jogadores.
A armadilha identitária é tão real e ao mesmo tempo tão hipnótica para algumas pessoas de esquerda que muitos não se dão conta de que o próprio termo “identitário”, derivado de identidade, evoca o particular, não o coletivo. Está baseado no que nos diferencia e não no que nos iguala. É sedutor porque a esquerda está condicionada a pensar em incluir o “diferente”. Só que “a competição pretendida pela classe dominante”, valendo-se desse poder de sedução, tende a promover o esvaziamento da luta política e a incentivar as lutas individuais, enfraquecidas e vazias.
Uma entrevista publicada na Folha de SP, em 01/12/2021 com Alicia Garza, Cofundadora do Black Lives Matter, ajuda a pensar sobre isso. E é sobre essa entrevista que eu quero falar.
Garza fala em “se envolver em seu próprio contexto político e histórico” e em “fazer um trabalho que mude o mundo”.
Quando perguntada se é possível para os movimentos sociais alterar profundamente a sociedade sem ocupar a política tradicional, é categórica: “Acho que não”. “A política é o lugar onde as regras são feitas, onde o governo molda nossas vidas. Se a deixamos intocada, estamos deixando uma enorme arena de poder nas mãos de outras pessoas”. E mais ainda, ela fala que “Muitas vezes as pessoas ficam confortáveis na arena cultural, em vez de também lutar de verdade para mudar a arena política”.
Ao responder a pergunta “Nas últimas décadas tivemos um fortalecimento das pautas identitárias, e da ideia de que grupos minoritários devem ocupar a política. Mas é suficiente eleger uma pessoa negra que não esteja necessariamente engajada na agenda racial, ou uma mulher que não esteja realmente envolvida com as questões de gênero?”, novamente é enfática e destemida. Ela diz: “Não. É uma transformação incompleta. Representatividade é ter pessoas que parecem com você em posições de poder. Mas a mudança realmente acontece quando você tem pessoas que dividem os mesmos valores que você, e que lutam por esses valores em posições de poder”.
A escritora critica o fato de muitos ativistas estarem se tornando celebridades, no sentido comercial da palavra e também critica o “lugar de fala” como uma forma de encerrar discussões. Para ela a experiência individual não pode se sobrepor ao diálogo e “nenhuma mulher fala por todas”.
Em tempos de despolitização e de extravagancias neoliberais, é muito significativo que uma pessoa tão expressiva para o movimento social, como Alicia Garza, reforce a necessidade da participação política e conteste abertamente o caráter individualista e superficial que tem prevalecido no debate de muitos setores do campo progressista.
Com isso ela ajuda a demonstrar que críticas, procedentes da esquerda, às pautas identitárias, estão longe de ser críticas aos oprimidos da sociedade capitalista. Elas defendem que a mudança deve ser estrutural e que “os jogadores saem na frente quando cooperam”.
Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical