Está ingressando nessa Casa o PL 17/2021. Trata-se do texto de conversão em lei da MP 1045, que versa sobre auxílio emergencial, suspensão de contrato e redução de salário. Um conteúdo ruim, pois resulta na redução de renda e essa redução tem como consequência imediata a redução de consumo, de qualidade de vida e, portanto, tendencialmente, aumenta os riscos de adoecimento e morte.
No texto, porém, foram incluídas muitas outras matérias: 407 emendas, além de alterações propostas diretamente pelo relator. Mais de 90 artigos. O projeto, segundo sua ementa, estabelece “medidas complementares para o enfrentamento das consequências da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19) no âmbito das relações de trabalho”. Quando lemos seu teor, é fácil constatar que não se trata disso.
O projeto prevê três diferentes programas de contratação, o que gera a sensação de que existe alguma preocupação com a fomentação de trabalho e renda. Os programas, porém, têm em comum a inexistência de garantia de renda mínima, pois se referem ao pagamento pelas horas trabalhadas, sem instituir um mínimo de horas que garanta o recebimento de pelo menos um salário-mínimo por mês. O PRIORE possibilita a contratação de jovens com salário reduzido, com FGTS pela metade, por até 24 meses. Gratificação natalina e férias são suprimidos, pois a previsão é de receber apenas os valores proporcionais às horas trabalhadas. O pagamento é sob a forma de bônus, sem verter, portanto, contribuição previdenciária. A contratação deve ser pelo máximo de 22 horas semanais, por até 24 meses, com pagamento de “benefício” custeado em parte pela União, a título indenizatório. Não há direito a férias, mas a um recesso de 30 dias, com recebimento de metade apenas da remuneração.
O projeto chega a prever que quem for contratado pelo REQUIP estará impedido de se organizar como categoria e realizar negociação coletiva, disposição que afronta flagrantemente os compromissos firmados pelo Brasil diante da OIT, já que atinge diretamente a liberdade sindical. A previsão é de que os bônus pagos pelo trabalho não integrem o salário de contribuição. O próprio trabalhador deverá se inscrever e contribuir como segurado facultativo. Ambos, portanto, são espécies de contrato sem vínculo, sem garantia de renda ou de manutenção do trabalho, que retiram recursos da Previdência social. De que modo isso poderia auxiliar no enfrentamento da crise sanitária, em um momento em que precisamos de segurança, inclusive para consumir, de um sistema de Seguridade Social fortalecido?
O terceiro programa, chamado de Serviço Social Voluntário, tem previsão de pagamento de contraprestação pecuniária, também pelo valor hora do salário-mínimo. A contratação, pelos municípios, pode durar até 18 meses e contraria a regra constitucional do artigo 37. Mas não é só isso, o PL 17 ainda altera a legislação trabalhista, “facultando” extensão da jornada para as atividades diferenciadas, com adicional de 20%, quando a Constituição estabelece um adicional mínimo de 50% para horas extraordinárias de trabalho. Altera a jornada dos trabalhadores em minas de subsolo, permitindo extensão por até 12h e sem intervalo. Há inúmeros estudos demonstrando o quanto a extensão da jornada prejudica a saúde. Se o projeto tem por objetivo estabelecer medidas de enfrentamento à pandemia, qual o sentido de regras que estendem jornada ou reduzem o adicional de horas extras? Especialmente assim, de forma direcionada a algumas categorias, como a de quem trabalha em minas de subsolo?
O projeto ainda prevê outras hipóteses de pagamento de prêmios, como contraprestação do trabalho, alterando o artigo 457A da CLT e, com isso, suprimindo contribuição previdenciária. Altera várias regras para a auditoria fiscal (art. 627 e seguintes da CLT), impedindo praticamente a prevenção contra adoecimento e acidentes no trabalho. Tudo isso, sem relação alguma com a necessidade urgente de dar conta dos efeitos da covid-19 e da ausência de gestão pública de combate e contenção de sua disseminação e de seus efeitos. Ao contrário, dificultar o trabalho dos auditores fiscais é potencializar os riscos e os danos efetivos, no ambiente de trabalho.
Uma clara demonstração do verdadeiro propósito das alterações contidas no PL 17 está nas regras que alteram os requisitos para a gratuidade da justiça e seus efeitos. As alterações são propostas, na CLT, no CPC e nas leis dos juizados especiais estaduais e federal. Para ter direito ao benefício, será necessário provar a condição de miserabilidade (renda familiar mensal per capita de até meio salário-mínimo ou renda familiar mensal de até três salários-mínimos), atestada pelo próprio governo federal, a partir de cadastro em programas sociais que sequer sabemos se irão existir. E mesmo os miseráveis que obtiverem o reconhecimento do direito à gratuidade deverão ser condenados a pagar custas e honorários de sucumbência, que serão pagos com o que for recebido no mesmo ou em outro processo. Quem por acaso pedir o benefício sem estar incluído em uma das hipóteses previstas, deverá ser condenado como litigante de má-fé.
Por fim, há previsão de quitação total em acordo extrajudicial e uma tentativa quase infantil de impedir a magistratura trabalhista de avaliar o conteúdo desses ajustes. O que se verifica é um verdadeiro despudor na intenção de coibir o acesso à Justiça, tornando-o ainda mais inalcançável às pessoas, para as quais a tutela estatal é muitas vezes a diferença entre sobreviver ou perecer.
A exemplo do que ocorreu em 2017, o projeto tramita em regime de urgência e já nasce com vício de origem. Uma medida provisória não pode alterar regras processuais nem matérias estranhas ao seu objeto, sem discussão pública. O Brasil é signatário de convenção internacional que exige o diálogo social para que modificações como essas sejam promovidas.
A Câmara dos Deputados, infelizmente, ignorou as regras do jogo, internas e externas, e aprovou esse texto medonho. Cabe ao Senado, coerente com a postura já adotada diante das tentativas golpistas havidas durante a tramitação dos projetos de conversão das MPs 927 e 936, dar uma vez mais a resposta adequada a esse tipo de manobra ilegal de desmanche dos direitos sociais.
A MP perde vigência dia 7 de setembro, uma data simbólica, afinal qualquer nação independente age a partir da ideia primária da autopreservação de seu povo. O texto do PL 17 atinge a sociabilidade e, portanto, a todos que vivemos no Brasil. Ao reduzir renda, aumentar jornada, autorizar contratação precária e punir quem acessa a Justiça do Trabalho, massacra quem vive do trabalho, mas também quem empreende. Impede o consumo, aumenta a instabilidade social e aprofunda desigualdades. Promove violência simbólica e real.
Em nome do quê?
Já não se reconhece garantia alguma contra a despedida, o salário-mínimo não permite a compra de cesta básica durante um mês inteiro e há regra permitindo trabalho por 12 horas sem intervalo. Em lugar de alterar esse abismo entre ricos e pobres, num país em que apenas no último ano 19,3 milhões de pessoas foram devolvidas à extrema pobreza, enquanto os 65 brasileiros mais ricos somaram um patrimônio de mais de R$ 219 bilhões, o que se pretende é aumentar o fosso.
A classe trabalhadora no Brasil já está no limite. Atingimos a trágica marca de 570 mil mortos por covid-19 e tantas trabalhadoras e trabalhadores lidam hoje com as sequelas desse vírus terrível. Todas as cidades no Brasil contam com um número cada vez maior de seres humanos que buscam comida no lixo, moram nas ruas, trabalham de forma precarizada.
Um país que honra a própria independência e quer realmente enfrentar os efeitos da pandemia, que possui algum projeto de nação, precisa promover a circulação das riquezas, o que se dá por meio de incentivos a quem empreende, aumento dos salários e garantias contra a perda do emprego. É hora de reforçar o sistema de Seguridade Social, de investir em hospitais, em pesquisa científica. De fortalecer os vínculos de emprego e apostar na Justiça do Trabalho como meio de garantir direitos que são essenciais à vida. O exato contrário do que o PL 17 propõe.
Por isso, venho por meio desta carta pública SUPLICAR aos Senadores e às Senadoras da República que não coloquem em votação esse projeto perverso, que não sacrifiquem ainda mais quem vive do trabalho. O Brasil está agonizando, é inadmissível que o Parlamento o sufoque ainda mais.
Valdete Souto Severo é juíza do trabalho e professora universitária.
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