O filme “Você não estava aqui” retrata o aprofundamento da espoliação de quem vive do trabalho, através da cilada de um discurso sedutor, pelo qual as pessoas são convencidas de que têm autonomia e liberdade para trabalhar muitas horas, ganhar muito pouco, viver muito mal.
No Brasil, não é apenas a precarização das condições de trabalho que torna a vida cada dia mais difícil. Há uma gestão pública para a morte, traduzida na sonegação de vacinas em 2020, no incentivo à aglomeração, no desmatamento, no aumento da miséria, no recrudescimento da violência estatal.
A provocação do título do filme dialoga com a falácia do discurso que separa o individual do coletivo, e ao mesmo tempo os confunde. O protagonista é várias vezes responsabilizado pelo próprio fracasso, pelo esfacelamento das suas condições de vida, pelo adoecimento de seus familiares.
Essa racionalidade individualista já rendeu afirmações, cuja perversidade só pode ser dimensionada quando comparada à dor pelas vidas ceifadas. Fomos considerados um “país de maricas”, porque choramos nossos mortos; de “idiotas que até hoje ficam em casa”. E acabamos por pessoalizar também a nossa insatisfação na figura de quem sistematicamente nos agride.
Não se trata de negar a importância simbólica de quem, tendo o dever de proteger, expõe vidas, minimiza perdas e debocha de uma realidade trágica. Trata-se, porém, de reconhecer que a luta política por uma sociedade melhor, numa realidade de quase 500 mil mortos pela covid-19 e quase 20 milhões de miseráveis, não pode se restringir à reação contra um sujeito específico ou à aposta em um “salvador da pátria”.
Recentemente, o STF conferiu legalidade à redução de salário por acordo individual e extinguiu os juros na Justiça do Trabalho. O Parlamento permanece inerte em relação aos pedidos de impeachment. A grande imprensa se omitiu na cobertura das manifestações do dia 29, assim como vem se omitindo na sensibilização e na divulgação dos desdobramentos de chacinas como a do Jacarezinho ou na denúncia dos desmanches operados na legislação ambiental e trabalhista.
Pessoas se aglomeram em festas clandestinas ou repassam mensagens de ódio, sem poupar sequer as crianças, como recentemente ocorreu em relação à filha de Manuela D’Ávila, uma menina de 5 anos ameaçada de estupro em redes sociais bolsonaristas. Perceber o que somos enquanto sociedade não implica negar personalidades destrutivas ou o que elas provocam quando ocupam postos de poder, mas compreender que nosso desafio é muito mais profundo.
A mudança será coletiva ou não ocorrerá
As insurreições populares deflagradas em 2013, ditadas pela percepção de que as promessas da Constituição nunca foram cumpridas, acabaram catalizando o fascismo histórico, que no século XX já havia reunido 1 milhão de pessoas em um só partido e que já estava sendo reavivado por iniciativas como a formação da Frente Integralista Brasileira em 2005.
Desaguaram no golpe jurídico-parlamentar que retirou Dilma do poder, na prisão política de Lula e numa coordenação de forças para descosturar ainda mais a ordem constitucional. Mas também permitiram que víssemos com mais nitidez quem realmente somos, que discutíssemos seriamente a necessidade de superar uma história feita de promessas não cumpridas e que percebêssemos a força que surge das mobilizações coletivas que tomam as ruas.
Se houve reação, foi porque as manifestações de 2013 abalaram nossa estrutura colonial patriarcal violenta. O processo histórico seguiu seu curso e hoje vivemos ainda desdobramentos daquele despertar. No último dia 29 de maio, mais de 500 mil pessoas foram às ruas demonstrar sua coragem para exigir mudanças.
Lula, “você não estava aqui”. Nem a CUT, nem o PT.
A concordância com um caminho em que se admite permitir que o Brasil siga sangrando até que venham as eleições é inaceitável. Segundo o CAGED, no primeiro trimestre de 2021 a extinção de vínculos de emprego por morte de trabalhadora(e)s aumentou 71,6%, em relação ao mesmo período do ano passado. Foram mais de 13,2 mil trabalhadora(e)s mortos naquele período de 2020 e 22,6 mil neste ano. A continuidade dessa realidade não pode constituir um preço razoável a ser pago até outubro de 2022.
É urgente fazer o que não foi feito nos últimos 32 anos: investir na saúde pública, no saneamento básico e na distribuição de renda; acabar com a lógica militar autoritária; realizar reforma agrária; taxar as grandes fortunas; expandir as áreas de preservação ambiental; regularizar as terras indígenas. Apostar em uma indústria nacional limpa; na educação pública de qualidade, com investimento em pesquisa científica; manter o controle estatal de empresas estratégicas. Revogar medidas como o teto de gastos sociais, as “reformas” trabalhista e previdenciária, a lei da liberdade econômica. Aumentar a segurança e a prevenção nos ambientes de trabalho, reduzir jornada, socializar a produção e a distribuição de alimentos e remédios. Esse é, inclusive, um elenco tímido dos desafios mais prementes, que concretamente significa, para muitas brasileiras e brasileiros, a possibilidade de seguir sobrevivendo.
Esperar 2022 não é apenas adiar essas urgências, é compactuar com o atual estado de coisas. Quando o povo, em desespero, se expõe ao risco de contaminação e de morte para dizer que basta, é preciso que todos assumamos uma clara posição sobre isso. Afinal, omissão também faz sangrar.
Valdete Souto Severo é juíza do trabalho e professora universitária.
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