Este debate — que poderia envolver uma compreensão mais clara e esclarecedora sobre a questão das ideologias —, está cada vez mais obscuro e cheio de preconceitos nas redes sociais. Não deveria, pois a internet transborda com boas e alentadas informações sobre as chamadas “ideologias” — esquerda, direita e centro. Fora os livros disponíveis sobre o assunto. Os títulos são incontáveis.
Sobre o que diferencia a esquerda da direita, recomendo a leitura do breve, mas esclarecedor artigo do jornalista Ricardo Cappelli — “A esquerda morreu?”1 Quem desejar aprofundar um pouco mais sobre o assunto, sugiro a leitura do livro Direita e Esquerda – razões e significados de uma distinção política, de Norberto Bobbio2.
Como o artigo de Cappelli é absolutamente completo para o que se propõe, não cabe aqui perder tempo com essa temática, pois entendo que o mesmo esgota o assunto de forma clara, objetiva e inteligente. Vale a pena lê-lo!
Assim, o objetivo deste brevíssimo texto é tentar lançar luz sobre essa incompreensão da militância de esquerda, que a deixa perplexa no debate político, nas redes e nas ruas, e que, portanto, a desalenta — que é o inconformismo ou revolta com o chamado “pobre de direita”, que traz consigo também uma carga de perigosos preconceitos3 com a pobreza4. Vamos tentar entender esse “fenômeno”. Há outras “lacrações” pseudo-esquerdistas. Mas “dinamitar” esta já ajuda bastante nesse debate ainda muito rasteiro e precário.
Pré-condição para tomada de consciência política
Uma pessoa pobre tem de ser necessariamente de esquerda? Qual o pré-requisito para sê-lo? Por quê?
Não. Porque não é a condição social ou econômica que determina a tomada de posição política ou determina ainda a consciência político-ideológica e social. Há nessa “exigência” da militância de esquerda contra os mais pobres muita abstração.
O fator determinante é a formação da consciência social, que não se dá imediatamente pelas experiências vividas. Essa formação requer estudo e reflexão. Requer mediações. Do contrário, as favelas e periferias estariam cheias de esquerdistas!
Desse modo, diante da realidade brasileira, é até mais fácil uma pessoa pobre ser de direita. Isto é, alguém que mesmo sendo uma pessoa pobre, sem posses, defenda interesses diametralmente opostos aos seus. Foi isso que aconteceu, por exemplo, com a eleição de Bolsonaro, quando quase 58 milhões de brasileiros o escolheram presidente da República em 2018.
Por que é mais fácil, mesmo sendo uma pessoa pobre, ser de “direita”?
Ideias dominantes, da classe dominante
Porque, segundo Marx5, “As ideias dominantes numa época nunca passaram das ideias da classe dominante”. Isto explica, portanto, para quem concordar com essa tese, porque, em geral, os pobres são majoritariamente de “direita”, ainda que sequer essa maioria domine ou compreenda, ao menos rudimentarmente, esse conceito.
Ou seja, como os detentores do poder econômico também detêm os meios de difusão de massa, esses difundem massivamente suas ideias, como as dominantes. Fazem isso, cotidianamente, por meio da chamada indústria cultural, que reproduz aos borbotões as ideias da classe dominante.
Outrossim, diante disso, nada tem de antinatural alguém que seja pobre se posicionar à direita do espectro político. Ao contrário! Nem é preciso uma educação formal para isso. Os meios de comunicação fazem isso no dia a dia e, desse modo, massificam as “ideias dominantes da classe dominante”. Então, por que alguém que é pobre (sem posses) não poderia/deveria ser ou votar na direita?
Não cabe à esquerda essa estupefação ou preconceito em relação a isso. Esse espanto nada mais é que uma espécie de consciência ingênua [da esquerda], que imagina ser possível aprender e/ou apreender algo sobre determinado objeto, no caso o chamado “ser político”, sem mediações, isto é, sem estudo sobre esse determinado objeto. Isso é uma abstração ingênua, portanto, falsa!
Aquisição de consciência de classe e/ou social é resultado ou produto de estudo e reflexão. Não existe conhecimento sem mediação. Ou dito de outro modo: todo conhecimento é mediado.
O pobre não se rebela porque é pobre. Pobre não tem necessariamente que votar na esquerda porque é pobre. Esse raciocínio é ingênuo. Os pobres só irão se rebelar e/ou votar conscientemente ou até mesmo tomar o “céu de assalto” se houver uma consciência e compreensão sobre a estrutura social perversa reinante que lhe massacra.
A esquerda está perdendo no campo da batalha das ideias, porque não está conseguindo se contrapor às ideias dominantes da classe dominante. Para mudar a realidade é preciso compreendê-la.
A dianteira de Bolsonaro, que pauta o debate político a todo momento, e outras incredulidades da cena política ora reinantes são produto dessas e de outras incompreensões.
Por fim, é importante não esquecer que mais de 2/3 desses quase 58 milhões de votos obtidos pelo atual presidente da República outrora foram depositados em Lula (2003-2010) e depois em Dilma (2011-2016).
Marcos Verlaine, jornalista, analista político e assessor parlamentar licenciado do Diap
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NOTAS
1 Portal Disparada – Ricardo Cappelli: A esquerda morreu? – https://bit.ly/3hC5caS- acesso em 3/01/21
2 NORBERTO, Bobbio. Direita e Esquerda – Razões e significados de uma distinção política, 1994. Editora Unesp, 1ª reimpressão, 129 páginas.
3 Revista Imagem – Pesquisadora alerta para discurso preconceituoso contra “pobre de direita” – https://bit.ly/3n8q8Y1 – acesso em 3/01/21
4 DW Notícias – Pobreza extrema cresce no Brasil e afeta 13,5 milhões de pessoas – https://bit.ly/38Ux0mV – acesso em 3/01/21
5 Karl Marx (1818-1883) formulador do que se convencionou chamar “marxismo” morreu pobre, esquecido e sem pátria: exilado em Londres, foi velado por apenas 11 pessoas, incluindo o coveiro. Suas ideias, porém, se refletiriam na vida de bilhões durante o século 20 e ainda refletem. Poucos pensadores exerceram influência política tão clara quanto Marx. Certamente, nenhum foi discutido com tanta paixão — mesmo por leigos. Um pouco disso se deve à missão que Marx julgava ter, hoje estampada em sua lápide: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de várias formas. A questão, no entanto, é mudar o mundo”. Foi com espírito revolucionário que o alemão, com seu amigo e financiador Friedrich Engels, lançou o Manifesto Comunista, em 1848 — texto curto que ainda hoje ofusca sua obra mais célebre e muito mais complexa — O Capital.