Por Marcos Aurélio Ruy
As quatro canções desta edição estavam destinadas para a semana passada, mas com a lembrança do triste aniversário da morte de John Lennon e Tom Jobim, no dia 8 de dezembro, ficaram para esta semana.
Milton Nascimento e Pedro Tierra que perdoem, mas a primeira desta seleção é para prestar homenagem a um grande homem. O bispo emérito da Prelazia de São Félix, na região do Araguaia, no Mato Grosso, Dom Pedro Casaldáliga, que deixou a Espanha e abraçou o Brasil em 1968.
Um homem de corpo franzino foi um gigante no enfrentamento à ditadura (1964-1985). E por sua opção verdadeira aos mais pobres, respondeu a processos de expulsão do país e sofreu diversos atentados. Um dos mais graves aconteceu em Ribeirão Cascalheira (MT).
Ao saber que duas mulheres estavam sendo torturadas na delegacia da cidade, Casaldáliga e o padre João Bosco Penido Burnier foram ao local e no auge da discussão, Burnier ameaçou denunciar os policiais torturadores. Foi agredido e morreu com um tiro na nuca. Resultado: o povo incendiou a delegacia que deu lugar a uma igreja
Um gigante na defesa dos direitos humanos e na luta dos camponeses pela posse da terra e pelos direitos dos povos indígenas. Acometido pelo mal de Parkinson, aos 91 anos, o bispo é amado pelo povo e, mesmo para um ateu, graças a Deus, é um excelente nome para a canonização pela igreja católica. O seu maior milagre é ter dedicado sua vida aos pobres e perseguidos.
“Estamos Chegando”, com música de Milton Nascimento, é um dos quinze cânticos da “Missa dos Quilombos”, celebrada pela primeira vez em 20 de novembro de 1981, em Recife, justamente no dia em que o último líder do Quilombo dos Palmares foi assassinado em 1695, data que virou o Dia Nacional da Consciência Negra por isso. Um batuque africano para celebrar a resistência.
“Estamos chegando do chão da oficina,
estamos chegando do som e das formas,
da arte negada que somos,
viemos criar.”
Em 2019, esse álbum lançado em 1982, ainda ressoa pelos cantos do Brasil e denuncia a exploração de milhões de seres humanos escravizados por quase quatro séculos no país e seus descendentes ainda sofrem com o racismo.
A de Ó (Estamos Chegando), de Milton Nascimento, Pedro Tierra e Pedro Casaldáliga
Estamos chegando do fundo da terra,
estamos chegando do ventre da noite,
da carne do açoite nós somos,
viemos lembrar.
Estamos chegando da morte dos mares,
estamos chegando dos turvos porões,
herdeiros do banzo nós somos,
viemos chorar.
Estamos chegando dos pretos rosários,
estamos chegando dos nossos terreiros,
dos santos malditos nós somos,
viemos rezar.
Estamos chegando do chão da oficina,
estamos chegando do som e das formas,
da arte negada que somos,
viemos criar.
Estamos chegando do fundo do medo,
estamos chegando das surdas correntes,
um longo lamento nós somos,
viemos louvar.
A de Ó
Estamos chegando dos rios fogões,
estamos chegando dos pobres bordéis,
da carne vendida que somos,
viemos amar.
Estamos chegando das velhas senzalas,
estamos chegando das novas favelas,
das margens do mundo nós somos,
viemos dançar.
Estamos chegando dos grandes estádios,
estamos chegando da escola de samba,
sambando a revolta chegamos,
viemos gingar.
A de Ó
Estamos chegando do ventre de Minas,
estamos chegando dos tristes mocambos,
dos gritos calados nós somos,
viemos cobrar.
Estamos chegando da cruz dos engenhos,
estamos sangrando a cruz do batismo,
marcados a ferro nós fomos,
viemos gritar.
Estamos chegando do alto dos morros,
estamos chegando da lei da baixada,
das covas sem nome chegamos,
viemos clamar.
Estamos chegamos do chão dos quilombos,
estamos chegando no som dos tambores,
dos Novos Palmares nós somos,
viemos lutar.
A de Ó
Nessa toada de denúncia das mazelas do mundo, a segunda música desta seleção é “Clandestino”, do francês Manu Chao (Jose-Manuel Thomas Arthur Chao). Filho de espanhóis, o artista cresceu bilíngue e bebeu em diversas fontes musicais e poéticas. Seu trabalho é uma miscelânea de sons. Suas temáticas invariavelmente versam sobre as lutas de trabalhadoras e trabalhadores para superar suas o que os oprime e os deixa infelizes.
Em “Clandestino” está a dureza enfrentada pelos imigrantes forçados, todos pobres, quase todos negros. Sufocados por perseguições, guerras e miséria, são rechaçados por reacionários europeus, muitos morrem ainda no mar, na tentativa de manter a vida e o sonho.
“Perdido no coração
Da grande babilônia
Me chamam de clandestino
Por não ter documento”
Clandestino, de Manu Chao
Sozinho vou com minha dor
Escolho minha sentença
Correr é meu destino
Para burlar a lei
Perdido no coração
Da grande babilônia
Me chamam de clandestino
Por não ter documento
Pra uma cidade do norte
Eu parti para trabalhar
deixei minha vida
Entre Celta e Gibraltar
Sou uma arraia no mar
Fantasma da cidade
Minha vida é proibida
Disse a autoridade
Sozinho vou com minha dor
Escolho minha sentença
Correr é meu destino
Por não ter documento
Perdido no coração
Da grande babilônia
Me chamam de clandestino
Eu sou o Quebra Lei
Mano Negra clandestina
Peruano clandestino
Africano clandestino
Maconha ilegal
Sozinho vou com minha dor
Escolho minha sentença
Correr é meu destino
Para burlar a lei
Perdido no coração
Da grande babilônia
Me chamam de clandestino
Por não ter documento
Argelino clandestino
Nigeriano clandestino
Boliviano clandestino
Mão Negra ilegal
“Prece para um Trabalhador”, do chileno Víctor Jara (1932-1973) como um hino canta para aumentar a autoestima de quem trabalha e é duramente explorado pelo capital devorador. Víctor Lidio Jara Martínez foi assassinado no Estádio Chile, na capital Santiago, dias após o sangrento golpe de Estado liderado por Augusto Pinochet.
A vitória sobre seus assassinos veio com o fim da ditadura em 1990 e neste ano com o povo cantando suas canções nos gigantescos protestos nas ruas de seu país. A arte e a alegria se impõem sobre os carrascos da vida.
Prece para um trabalhador, de Victor Jara
Levanta e olha a montanha
De onde vem o vento, o sol e a água
Tu que conduz o curso dos rios
Tu que semeaste o voo da tua alma
Levanta e olha tuas mãos
Para crescer, estenda a teu irmão
Juntos iremos unidos na sangre
Hoje é o tempo que pode ser o amanhã
Libertemo-nos daquele que nos domina
Na miséria traga-nos o teu reino de justiça
E igualdade sopra como o vento a flor do precipício
Limpa como fogo o cano do meu fuzil
Faça-se por fim tua vontade aqui na terra
Nos dê tua força e valor para combater
Sopra como o vento a flor do precipício
Limpa como fogo o cano do meu fuzil
Levanta e olha tuas mãos
Para crescer, estenda a teu irmão
Juntos iremos unidos no sangue
Agora, e até a hora da nossa morte
Amém
Para finalizar, nada melhor do que um grande samba de Paulinho da Viola, “Pecado Capital”, porque “dinheiro na mão é vendaval, mas é preciso viver e viver não é brincadeira não, quando o jeito é se virar, cada um trata de si, irmão desconhece irmão”. Qualquer semelhança com a situação atual do país, óbvio, não é mera coincidência.
Pecado Capital
( Composição: Paulinho da Viola/1975)
Intérprete: Paulinho da Viola
Dinheiro na mão é vendaval
É vendaval!
Na vida de um sonhador
De um sonhador!
Quanta gente aí se engana
E cai da cama
Com toda a ilusão que sonhou
E a grandeza se desfaz
Quando a solidão é mais
Alguém já falou…
Mas é preciso viver
E viver
Não é brincadeira não
Quando o jeito é se virar
Cada um trata de si
Irmão desconhece irmão
E aí!
Dinheiro na mão é vendaval
Dinheiro na mão é solução
E solidão!
Dinheiro na mão é vendaval
Dinheiro na mão é solução
E solidão!
Dinheiro na mão é vendaval
É vendaval!
Na vida de um sonhador
De um sonhador!
Quanta gente aí se engana
E cai da cama
Com toda a ilusão que sonhou
E a grandeza se desfaz
Quando a solidão é mais
Alguém já falou…
Mas é preciso viver
E viver
Não é brincadeira não
Quando o jeito é se virar
Cada um trata de si
Irmão desconhece irmão
E aí!
Dinheiro na mão é vendaval
Dinheiro na mão é solução
E solidão!
Dinheiro na mão é vendaval
Dinheiro na mão é solução
E solidão!
E solidão! E solidão!
E solidão! E solidão!
E solidão! E solidão!