PUBLICADO EM 03 de maio de 2019
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Beth Carvalho foi a heroína de seu samba; opinião

Ela descobriu velhos sambas de Cartola, inéditos de Nelson Cavaquinho e, num momento em que isso ainda não dava dinheiro, fez a sua prece de fé para que a raça brasileira estivesse sempre de pé

Em 1986, Beth Carvalho entre Chico Buarque e Caetano Veloso, no programa “Chico e Caetano” (TV Globo) Foto: Divulgação

Por Joaquim Ferreira dos Santos

Não pense que meu coração é de papel, mas grandes cantoras como Beth Carvalho não morrem. Viram corda mi de algum cavaquinho, pé de tamarindo num terreiro de pagode, arte popular no nosso chão.

Terça-feira ela passou pela apoteose dessa existência de 72 anos e encerrou seu impressionante desfile de canções, quase quatro dezenas de disco, lembretes sobre camarões que dormem e a onda leva, louvores a coisinhas tão bonitinhas do pai e outras dezenas de goiabadas cascão em caixa, essa coisa fina que cada vez menos se acha. O samba agoniza mas não morre. Cantoras menos ainda.

Esta senhora rezadeira descobriu velhos sambas de Cartola, inéditos de Nelson Cavaquinho e, num momento em que isso ainda não dava dinheiro, fez a sua prece de fé para que a raça brasileira estivesse sempre de pé. Virou sambista e insistiu nisso até o fim. Inventou ao seu jeito um país de sotaque carioca e de paladar democrático. Se ele não é mais valorizado, se rola majoritariamente um pagode otário, mais sertanejo que suburbano, o problema não é dela. Partiu para outra e de lá, sentada à mão direita de Tia Ciata e Clementina, passará a assistir esta nossa comédia lamentável.

Beth Carvalho foi como a heroína do seu samba, uma Isaura que nos anos 70, quando todo mundo pensava o contrário, pegou na viola na certeza de que o samba não ia terminar naquela hora. Na contramão do sambão joia, dos Benitos e Jocafis, Beth foi procurar repertório nos pagodeiros suburbanos e lançou em 1977, 1978 e 1979, os LPs fundamentais de sua obra, Nos botequins da vida , Pé no chão e No pagode . Revelou o Fundo de Quintal, Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Luiz Carlo da Vila e acima de tudo que era possível viver como um passarinho, cantar, voar, sem direção.

Beth era brizolista, lulista e sempre aproveitava a rima para deixar algum recado de clamor populista: “Me diga gente/ De que me serve um saco de cheio de dinheiro/ Para comprar um quilo de feijão?” . A NASA mandou um de seus discos para Marte, mas a maior glória de Beth, botafoguense, é ter tido seu “Vou festejar” transformado em música de arquibancada no Maracanã.

Ela morreu no mesmo mês de abril de Linda Batista, a grande cantora dos cassinos, das boates de Copacabana e da Rádio Nacional que faz centenário neste mês de junho. As duas têm semelhanças. Brancas, moradoras da Zona Sul e cercadas de desconfianças por todos os lados. Eram mulheres num território onde o machismo passa a navalha, assedia e usa letras desconfortáveis contra elas. Linda Batista surgiu no final da década de 30, quando esse negócio de cantar era coisa de prostituta. Beth viveu em tempos menos preconceituosos, frequentava sozinha o Cacique de Ramos. Muitos, no entanto, não lhe perdoavam ter começado a carreira cantando bossa nova e, num segundo mau passo, toada romântica.

Antes ainda de Linda Batista, vieram Carmen Miranda e Araci de Almeida, e depois Marlene, Elza Soares, Ivone Lara, Clara Nunes. Agora, já que o grande show das sambistas brasileiras tem que continuar mesmo sem Beth Carvalho, ficam Alcione, Teresa Cristina, Ana Costa, Nize Carvalho, Fabiana Cozza e certamente muitas outras que agora são esquecidas, mas não se esquecerão da ordem desta senhora rezadeira. Rezar, de preferência com o banjo do Jorge Aragão ao fundo, com o surdo de marcação da Mangueira batendo forte, para que o amor e a bondade andem sempre de mãos dadas.

Joaquim Ferreira dos Santos é um jornalista e escritor brasileiro.

Fonte: Época

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