PUBLICADO EM 23 de dez de 2025

Colunista: Reflexões sobre o povo brasileiro

O Janus Tropical: Da Malandragem de Sobrevivência à Astúcia Solidária

Entenda como o Janus Tropical revela aspectos da formação brasileira através de Macunaíma e suas contradições.

O que é o Janus Tropical? Descubra como a figura de Macunaíma reflete a complexidade da identidade brasileira. Imagem: releitura de Macunaíma pela IA.

O que é o Janus Tropical? Descubra como a figura de Macunaíma reflete a complexidade da identidade brasileira. Imagem: releitura de Macunaíma pela IA.

Por Diógenes Sandim

A figura de Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter” de Mário de Andrade, não deve ser lida apenas como uma denúncia moral, mas como um diagnóstico ontológico da formação brasileira. Dizer que ele não tem caráter não significa que ele é mau, mas que ele é fluido, uma entidade em constante auto-organização. Ele é um ser inacabado, tal qual a própria nação, forjado na dialética entre a preguiça (a recusa ao trabalho alienado) e a astúcia (a inteligência para driblar a escassez).

Podemos analisar esse “jeito de ser” em dois atos evolutivos:

1. A Ontogenia da Malandragem (A Sobrevivência)

Historicamente, sob uma ótica que poderíamos aproximar de Karl Marx, a “malandragem” e o “jeitinho” nascem como respostas das classes oprimidas à rigidez das estruturas de poder e à escassez material.

A Gambiarra como Resistência:

Onde o Estado ou o Capital dizem “não há recursos”, o brasileiro diz “dá-se um jeito”. Essa criatividade é, na origem, um mecanismo de defesa biológica e social.
O Individualismo da Escassez:

Nesta primeira dimensão, a astúcia é usada para se dar bem individualmente porque o meio é visto como hostil. É a luta darwinista distorcida pela desigualdade social: a lei de Gérson (“levar vantagem em tudo”) é o grito de quem sente que, se não for esperto, será devorado.

2. A Metamorfose: A Complexidade a Favor do Todo

No entanto, seguindo o pensamento de Edgar Morin, o ser humano é homo complexus. Ele não é apenas egoísta; é também capaz de solidariedade profunda. Existe uma potência represada na malandragem brasileira que, se redirecionada, deixa de ser parasitária para ser regenerativa.

Se a malandragem é a capacidade de “hackear” o sistema para benefício próprio, a dimensão superior dessa ontogenia é “hackear” o sistema para o benefício da comunidade. É a transição da competição para a biologia do amor e da cooperação (como nos fala Maturana).

O Macunaíma Social: A Astúcia a Serviço da Vida

“Portanto, redescobrir o Macunaíma hoje exige uma nova cosmogonia política. Não se trata de matar o malandro para fazer nascer o santo, mas de sublimar a astúcia, elevando-a de uma tática de sobrevivência individual para uma estratégia de inteligência coletiva.

Imagine o ‘jeitinho’ despido de seu egoísmo. O que resta é uma capacidade inigualável de improvisação, flexibilidade cognitiva e empatia rápida — ferramentas essenciais para lidar com a complexidade do mundo contemporâneo. Quando o brasileiro utiliza essa ‘ontogenia da viração’ não para furar a fila, mas para organizar a comunidade; não para burlar a lei, mas para encontrar brechas que permitam a justiça social onde a burocracia falha; ele realiza a verdadeira antropofagia cultural.

Este ‘Macunaíma Social’ é o sujeito que entende que a verdadeira malandragem não é levar vantagem sobre o outro, mas sim perceber que, numa rede sistêmica e interconectada, o bem do outro é a condição de possibilidade do meu próprio bem.

Assim, a preguiça deixa de ser inércia e torna-se o tempo necessário para a reflexão filosófica e o ócio criativo. A mentira lúdica transforma-se em narrativa transformadora. E a ‘gambiarra’, antes um remendo provisório, evolui para se tornar tecnologia social: a arte de fazer muito com pouco, de curar o tecido social rasgado com os fios da solidariedade.

O ‘jeito de ser’ brasileiro atinge sua maturidade quando percebe que a maior esperteza do mundo é a bondade. É o momento em que o herói sem caráter finalmente define seu caráter: ele é, essencialmente, um ser de conexão. Ele utiliza sua ginga não para desviar dos problemas, mas para dançar com o caos até que ele se ordene em favor da vida de todos.”

Diógenes Sandim Martins é médico, diretor do Sindnapi e secretário-geral do CMI/SP

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