Por André Cintra
Há divergências e até contradições nas narrativas sobre as origens do Dia Internacional da Mulher. Uma das versões cita um incêndio criminoso na fábrica Cotton, de Nova York, em 8 de março de 1857. O dono da empresa, revoltado com a paralisação das trabalhadoras, teria fechado os portões e incendiado deliberadamente as instalações da fábrica. Sem saída, 129 operárias teriam morrido carbonizadas.
Apesar de muito difundida até hoje, essa versão não tem crédito. As mártires da Cotton nunca existiram, pelo simples dado de que nem sequer houve o tal incêndio. Os mais afoitos negam até a existência de uma fábrica com esse perfil na Nova York de mais de um século e meio atrás.
Bem menos contestado é o fato de que, em 1910, o 2º Congresso Internacional de Mulheres Socialistas aprovou uma resolução favorável ao Dia da Mulher, com atos nos mais diversos países em defesa da “igualdade entre os sexos”. As autoras do documento foram as líderes operárias Clara Zetkin e Käte Duncker, ambas do Partido Comunista Alemão. Além de direitos trabalhistas e sociais, elas cobravam o sufrágio universal.
Mas por que celebrar a data em 8 de março? Há quem fale em outro incêndio – este, sim, verdadeiro – que ocorreu na fábrica nova-iorquina Triangle Shirtwaist em março de 1911 (mas no dia 25). Morreram 129 mulheres e 23 homens – operários que, a cada semana, trabalhavam até 72 horas, por salários de US$ 6 a US$ 10.
A repercussão do caso teria levado militantes feministas a fixarem a celebração do Dia da Mulher no mês de março, com uma pauta focada em melhores condições trabalho. O primeiro grande acontecimento ligado às mulheres num 8 de março só aconteceu em 1914, quando foram realizadas marchas simultâneas de mulheres em capitais europeias para condenar a deflagração da 1ª Guerra Mundial.
Um dos países mais afetados pela guerra foi a Rússia. Em 1917, uma grande manifestação de operárias de Petrogrado marcou o início da chamada “primeira Revolução Russa”. As trabalhadoras, especialmente as tecelãs, começaram a ocupar as ruas em 23 de fevereiro conforme o calendário local, o juliano (data equivalente ao 8 de março no calendário ocidental, o gregoriano).
Entre os russos e, claro, as russas, a adoção do 8 de março como Dia da Mulher se tornou instantânea. Aos poucos, a data foi ratificada por partidos socialistas e entidades feministas do mundo inteiro, até ser reconhecida internacionalmente pela ONU (Organização das Nações Unidas), em 1975.
Seja qual for a versão em que você quiser acreditar – e a despeito das diferenças entre elas –, o fato é o que 8 de Março tem origem operária. Qualquer narrativa remonta à resistência das mulheres no chão da fábrica, ainda que pautas não trabalhistas – como o direito ao voto e a denúncia da guerra – possam ter peso.
Marx e, sobretudo, Engels estabeleceram a conexão entre a luta de classes e o patriarcado. “A exploração do homem pelo homem se iniciou com a opressão da mulher pelo homem”, escreveram os pais do socialismo científico. Lênin foi talvez o primeiro revolucionário a mostrar que a indústria podia representar um “fenômeno progressista” para as mulheres, na medida em que elas podiam romper “o isolamento patriarcal”.
O feminismo burguês é uma praga que, desde o século 19, tenta esmagar a natureza classista da luta das mulheres. Clara Zetkin denunciou esse risco num breve e genial ensaio de 1894 chamado Separação Contundente. Segundo a grande ativista alemã, “o feminismo burguês e o movimento de mulheres proletárias são movimentos sociais fundamentalmente diferentes”.
É por isso que, mesmo ao propor um Dia da Mulher, Zetkin deixava claro que as mulheres trabalhadoras tinham como potenciais aliados os “homens da própria classe” – mas jamais as “feministas burguesas”. Este é o sentido original do 8 de Março – daí suas contundentes reivindicações trabalhistas.
No último século, tanto no Brasil como no mundo, a burguesia insistiu em transformar o Dia do Trabalhador – o 1º de Maio – num mero Dia do Trabalho, corrompendo até o nome da celebração. O Dia da Mulher manteve a denominação original, mas seu sentido – sua natureza classista – está em xeque.
São empresas que aproveitam a data para brindar suas funcionárias – e mesmo suas executivas – com rosas, cartões e outras bobagens, mas que se negam a implantar a isonomia salarial. São empresários e empreendedores que relativizam casos tão comuns de assédio (sexual, moral e psicológico), mas capricham no discurso para o 8 de Março. São celebridades – da mídia, das artes, do esporte – que divulgam poemas ou declarações de amor às mulheres, mas se calam diante da opressão cotidiana sofrida pelas brasileiras em toda e qualquer esfera.
Sobram perguntas: até que ponto as correntes identitaristas nascidas sobretudo nos Estados Unidos não reforçam o feminismo burguês? Até que ponto nós mesmos cedemos e, ano após ano, deformamos um pouco mais o Dia da Mulher, neutralizando as pautas que interessam às trabalhadoras na cidade e no campo? Cadê a pauta das operárias nas bandeiras atuais de luta? Já não é hora de resgatar a vocação revolucionária do 8 de Março?
Fonte: Vermelho