PUBLICADO EM 08 de jan de 2018
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Desigualdade: Na China, concentração de riqueza dobra em duas décadas

1 milhão já vive nos subterrâneos de Pequim; Moradias em garagens de shoppings ou abrigos de guerra são usadas por imigrantes que vêm do campo; há três tipos de pobreza preocupantes na China: a do campo, a dos migrantes e uma da qual pouco se fala: a dos deslocados pelas reformas que permitiram ao país entrar para a Organização Mundial de Comércio (OMC), dizem especialista em desigualdade da Universidade da Califórnia Irvine, Dorothy Solinger ao Jornal O Globo (que produziu a matéria)

Em um mesmo quarteirão do bairro de Sanlitun — considerado um dos mais caros da capital — todos param para olhar a McLaren cor-de-rosa-fosco com “orelhas” metálicas instaladas na carroceria, estacionada na calçada de frente ao shopping , enquanto, a poucos passos dali, muitos seguem indiferentes à mãe que se mantém sentada naquele mesmo ponto, no chão, todos os dias com o filho doente nos braços que espera contar a solidariedade humana. Na rua, segue o homem encasacado que equilibra garrafas de plástico sobre a sua motoca de bagageiro improvisado remendada por fita adesiva que vive dos trocados que recebe pela reciclagem.

Com quase 1,4 bilhão de habitantes, a China é reconhecidamente um dos países que mais retirou pessoas da linha de pobreza nas últimas décadas. Foram nada menos do que 700 milhões de pessoas desde as reformas e a abertura da década de 1970 até 2016, de acordo com dados do Escritório de Redução da Pobreza e Desenvolvimento do Conselho de Estado. São quase três “Brasis”. Mas as diferenças entre ricos e pobres são gritantes. E se acentuaram nas últimas décadas. Segundo relatório recente do projeto World Wealth and Income Database (WID, banco de dados coordenado, entre outros, pelo economista francês Thomas Piketty), a fatia da riqueza nacional detida pelo 1% mais ricos dos chineses dobrou em 20 anos. Em 1995, o 1% mais afortunado entre os chineses tinha 15% da renda nacional. Essa parcela saltou para 30% em 2015.

Na abastada Pequim, onde os espigões brotam do chão a velocidade difícil de acompanhar e marcas de luxo disputam espaços vendidos ou alugados, a preço de ouro, em centros comerciais construídos a toque de caixa, estima-se que um milhão de pessoas vivam nos subterrâneos da cidade. Ficaram conhecidos pelos próprios chineses como a “tribo dos ratos”, ou “shuzu”. Em geral, são migrantes ou jovens recém-formados que buscam aluguéis com valores mais razoáveis em um mercado que não para de subir. Em um shopping de boas lojas, o elevador leva ao andar das garagens que, reformadas, ainda cheiram a tinta. É de lá que saem as escadas que levam aos “apartamentos” improvisados. Tem até loja de roupas baratas para os moradores.

A babá A., que prefere não ter o nome revelado, trabalha num condomínio de endinheirados do outro lado da rua. Ela veio da província de Henan, anos atrás, com a família para tentar ganhar a vida em Pequim. Ela não se considera pobre, mas tem vergonha de mostrar o quarto que divide com outras nove pessoas, entre o marido e dois filhos, que compartilham cinco beliches.

— Este ano pode ser que a gente vá para um quarto com menos gente. Vai ficar mais arrumado. Eu trabalho aqui do outro lado da rua. É bem conveniente. Não preciso gastar com passagens. Meu marido trabalha aqui no shopping — conta A.

Ela faz parte desse exército de trabalhadores que não têm como pagar para viver na cidade, mas não têm como viver sem o dinheiro que tiram dali. Essas pessoas não têm sequer o “hukou”, uma licença necessária para que os próprios chineses possam moram em Pequim. Prestam serviços que pagam muito pouco no mercado informal. Qualquer reclamação, não há a quem recorrer. Por não terem direito de residência na capital, tampouco têm acesso a hospitais públicos ou a colocar os filhos nas escolas do governo. Precisam pagar caro se quiserem usar esses serviços. Os apartamentos subterrâneos, em geral, ficam nas garagens de shoppings, ou nos antigos abrigos para situação de guerra, construídos pela cidade a partir da década de 1960 por ordem de Mao Tsé Tung.

Ações concentradas no campo

Atrás do Eldorado, outros milhões de migrantes instalaram-se nas periferias da capital. Nos últimos tempos, o governo começou a mandar essas pessoas embora da cidade aos milhares. Nas últimas semanas, o governo local tem conduzido uma série de demolições pelas áreas mais pobres da cidade, onde vivem, às vezes por muitos anos, essas pessoas que prestam pequenos serviços na capital. A situação é motivo de debates acalorados em rodas de amigos. Uns acham certo expulsar quem não é da cidade, e outros acreditam ser desumano tirá-las de casa em pleno inverno sem que tenham para onde ir.

Os esforços chineses para conter a pobreza são inegáveis. Algumas estatísticas mostram que têm caído as diferenças entre o campo e os grandes centros urbanos, um problema crônico no país. Inúmeras medidas têm sido tomadas e infraestrutura levada para as áreas mais pobres. O índice de Gini, que mede a disparidade de renda nos países, teve uma pequena queda entre 2013 e 2016, passando de 0,473 para 0,465, embora tenha registrado um leve aumento em relação a 2015 (0,462). O indicador varia de zero a um. Quanto mais perto de um, mais desigual o país.

Ao GLOBO a especialista em desigualdade da Universidade da Califórnia Irvine, Dorothy Solinger, afirma que há três tipos de pobreza preocupantes na China: a do campo, a dos migrantes e uma da qual pouco se fala: a dos deslocados pelas reformas que permitiram ao país entrar para a Organização Mundial de Comércio (OMC). Para se adequar às regras do organismo, a China acabou optando por desmantelar e forçar a falência de várias fábricas estatais, que funcionavam com subsídios do Estado e, por isso, ofereciam preços baixos artificialmente, o que caracterizaria a concorrência desleal na disputa por mercados internacionais. Com isso, cerca de 60 milhões de pessoas teriam perdido o emprego e não teriam sido recolocadas no mercado de trabalho desde então.

— Isso aconteceu entre 1997 e os anos 2000. Essas pessoas já tinham mais de 35 anos. Não tinham muito treinamento. Eram consideradas velhas e inúteis. Hoje, devem estar na casa dos 60 anos. Entrevistei muitas. Não há uma política focada nelas — salienta.

Segundo ela, o governo tem feito muito pelas áreas rurais, mas não tem melhorado a vida dos pobres das cidades:

— Não estou falando de migrantes. Essas pessoas a que me refiro têm “hukou”, só não têm emprego ou esperança.

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