Por Bem Burgis
Hollywood é frequentemente retratada como um refúgio do liberalismo elitista. Na medida em que isso é verdade é particularmente porque a lista negra de Hollywood tornou tão difícil produzir filmes da classe trabalhadora, como o clássico de 1954 “O Sal da Terra”.
Os filmes de Hollywood são impregnados com um liberalismo elitista e costeiro, que está fora de contato com as preocupações das pessoas comuns. Isso é, a qualquer custo, nós fomos informados por décadas por guerreiros da cultura conservadora.
A verdade é mais complicada. Hollywood nunca foi um monólito cultural ou político, e a precisão da acusação de elitismo tem diminuído ao longo dos anos.
Mas, uma coisa que me tocou quando eu reassisti o clássico filme de 1954, “O Sal da Terra,” durante a atual greve dos roteiristas é que, em qualquer medida em que a demanda seja verdadeira, os próprios conservadores merecem parte da culpa. Eles foram os maiores apoiadores do expurgo de “subversivos” dos estúdios de cinema do meio do século e qualquer outra pessoa com muita integridade para “nomear nomes” para o governo.
“O Sal da Terra” é exatamente o tipo de filme que os radicais da lista negra queriam criar – humano, frequentemente divertido, e profundamente em contato com as preocupações das pessoas comuns.
Um vislumbre da Hollywood que podia ter sido
“O Sal da Terra” foi feito fora do sistema de estúdios e financiado pelo Sindicato Internacional dos Trabalhadores de Minas, Moinhos e Fundições, um sindicato militante que tinha sido expulso do Congresso das Organizações Industriais (CIO) por sua recusa em expurgar comunistas. Os escritores, diretor e produtores do filme tinham todos sido colocados na lista negra de Hollywood por sua recusa de nomear nomes. O diretor, Herbert Biberman, tinha sido um membro dos “Dez de Hollywood,” o grupo de escritores e diretores jogados na cadeia por sua recusa em testemunhar para o Comitê de Atividades Não Americanas da Câmara (HUAC, na sigla em inglês).
“O Sal da Terra” conta a história de uma greve de mineiros ficcional – modelada de perto a uma real – em uma pequena cidade no Novo México. A personagem principal, Esperanza Quintero, é uma dona de casa prestes a ter seu terceiro filho. Seu marido e os outros mineiros de zinco trabalham em condições insalubres, e são vítimas de flagrante discriminação étnica pela corporação “Delaware Zinc” – uma versão finamente ficcional da Empire Zinc Company. Como o organizador sindical Frank Barnes diz aos mineiros, a empresa precisa tratar os trabalhadores mexicanos-americanos na Zinc Town pior do que qualquer um, para que eles possam dizer que seus equivalentes anglo-saxões em outras minas “pelo menos não estão tão mal quanto os mexicanos.”
Barnes, como muitos outros personagens, é essencialmente interpretado por si próprio. O elenco de “O Sal da Terra” inclui apenas cinco atores profissionais, e muitos dos papéis são interpretados pelas mesmas pessoas que inspiraram os personagens. Barnes é interpretado pelo organizador sindical na vida real, acadêmico e membro dos Democratas Socialistas da América, Clinton Jencks. O marido de Esperanza, Ramon Quintero, um líder sindical que tem problemas em tratar as mulheres como iguais, é interpretado por Juan Chacón – o real presidente de um sindicato local no Novo México.
Algumas dessas pessoas foram punidas severamente por sua participação no filme. Durante a repercussão sobre o filme, Jencks chamou a atenção das autoridades. Ele foi preso e condenado – baseado em uma evidência frágil – por supostamente mentir em um depoimento que ele não era um comunista. A atriz que retratou Esperanza, Rosaura Revueltas, foi deportada para o México enquanto o filme ainda estava sendo filmado. Ninguém morreu como resultado de sua participação, mas até isso é uma questão de sorte – um relatório menciona “tiros de rifle” sendo disparados no set por “vigilantes anticomunistas.”
Sob tais circunstâncias, é incrível que o filme tenha sido terminado de qualquer modo. Em uma linha do tempo onde a história de Hollywood não fosse estragada pelo macartismo, contudo, quem sabe quantos filmes como “O Sal da Terra” nós poderíamos ter tido?
Um conto de dois filmes de sindicato
“O Sal da Terra” é um filme sobre a luta de classes, mas não é uma dramatização bruta de lições de um grupo de leitura marxista. É um filme sobre pessoas reais, e se os policiais e os executivos das minas são vilões diretos, o filme não tem medo de explorar as falhas e complexidades de seus caras bons. Certamente, seria difícil argumentar que ele é mais um conto moral ideológico que “Sindicato de Ladrões,” um filme que saiu no mesmo ano e foi coberto de amor pela instituição de Hollywood – enquanto quase nenhuma sala ousou exibir “O Sal da Terra.”
“Sindicato de Ladrões” foi feito pelo diretor Elia Kazan como uma repreensão mal disfarçada com quem estava com nojo dele por nomear nomes para o HUAC. É sobre um sindicato de trabalhadores das docas dirigido por um violento mafioso, em que os personagens encaram uma escolha binária entre ter a coragem de enfrentar os mafiosos nomeando nomes para a Comissão de Crimes à Beira Mar, ou serem intimidados pelo silêncio. O filme é um exercício grotesco de autojustificação feito por um homem que delatou seus colegas não por envolvimento em crimes violentos, mas pela Primeira Emenda – atividade política protegida. Enquanto Clinton Jencks foi preso e Rosaura Revueltas foi deportada, “Sindicato de Ladrões” ganhou oito prêmios da Academia.
Kazan recebeu um Oscar pelo Conjunto da Obra – em 1999. Enquanto poucos dos atores e diretores reunidos tiveram a dignidade de recusar a aplaudir o homem que passou a era do macartismo apontando seus colegas para as autoridades, e outros protestaram fora da cerimônia, Robert DeNiro apresentou o prêmio e liberais de Hollywood em boas condições como Warren Beatty e Meryl Streep deram a Kazan uma ovação de pé.
Seis anos depois, a Academia estava esbanjando indicações para “Boa Noite e Boa Sorte” – um filme filmado em nostálgico branco e preto sobre a decisão do jornalista Edward R. Murrow para falar contra o macartismo. Aquela noite do Oscar foi hilariamente satirizada no episódio de “South Park,” “Smug Alert!” em que “smug” (Nota: convencido) é uma substância física como “smog” (Nota: poluição), e uma grande quantidade de “smug” é lançada no ambiente pelo diretor de “Boa Noite e Boa Sorte,” George Clooney. Eu tenho certeza de que todos que foram perseguidos por “O Sal da Terra” teriam apreciado a sátira, se eles estivessem aqui para ver Hollywood dando tapinhas em si mesma nas costas por fazer um filme sobre o macartismo, meio século depois que fazer isso precisaria de qualquer coragem.
Quando a Guilda dos Escritores da América (WGA) decide pelo que parece ser uma longa greve, vale a pena lembrar que o problema com Hollywood nunca foi falta de escritores e diretores que querem contar histórias convincentes sobre pessoas comuns, se a eles é permitido fazer isso e lhes é dado o apoio financeiro necessário. Escritores e diretores assim existiam em 1954, e eles existem hoje. Se nós estamos falando sobre a precariedade que os escritores estão lutando contra agora, ou o expurgo vicioso de radicais de Hollywood nos anos de 1950, o problema sempre foram os chefes.
E se você é um mineiro fazendo greve em “Zinc Town,” ou um roteirista fazendo greve em Hollywood, é sempre bom lembrar o que Esperanza diz a Juan, perto do final de “O Sal da Terra.” Ele insistia que nunca “voltaria para a empresa de joelhos” – voltar ao trabalho sem um contrato justo. Ela concorda, mas se opõe ao tom de resignação fatalista dele. “Eu não quero cair lutando,” ela diz. “Eu quero vencer.”
Ben Burgis é um colunista do Jacobin, professor adjunto de Filosofia na Universidade de Rutgers, e apresentador do show e podcast do YouTube “Give Them an Argument.” Ele é autor de vários livros, mais recentemente: “Christopher Hitchens: What He Got Right, How He Went Wrong, and Why He Still Matters.”
Fonte: Jacobin
Tradução: Luciana Cristina Ruy