PUBLICADO EM 27 de dez de 2017
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A formação de militantes era extremamente débil, explica Marco Antônio Coelho

Rádio Peão Brasil publicará uma série de  entrevistas que ajudam a compreender nosso país. Começamos com entrevista de Marco Antônio Tavares Coelho, advogado e jornalista mineiro . Nascido em Belo Horizonte, em 1926, ele era o último remanescente da cúpula do PCB em 1964, atuando junto com Luiz Carlos Prestes, então secretário-geral do partido. Quando houve o golpe militar no país, destituindo João Goulart, Marco Antônio era deputado federal pelo estado da Guanabara e teve seu mandato cassado. Ele foi preso e torturado pelo governo militar, época que conta em sua memória Herança de um sonho: Memórias de um comunista (Record, 2000).

Escritor e especialista em rios, Marco Antônio perseguiu todos os seus sonhos. Seu último livro, Rio Doce: a espantosa evolução de um vale, publicado pela editora Autêntica em 2011, é um primoroso estudo e uma declaração de amor ao rio mineiro, que agora tomado pela lama, agoniza depois do rompimento da barragem do Fundão, da Mineradora Samarco. Marco Antônio morreu ontem, no mesmo dia em que a lama de detritos que atingiu o rio alcançou a foz, no mar do Espírito Santo.

Antes do Rio Doce, o jornalista também publicou Rio das Velhas – memória e desafios (Paz e Terra, 2002) e Os descaminhos do São Francisco (Paz e Terra, 2005), onde discute os conflitos da transposição do velho Chico.

Em Herança de um sonho: Memórias de um comunista ele onde conta sua militância, desde a juventude, até os anos de prisão (janeiro de 1975 até a véspera do Natal de 1978). Em um período de 30 anos, o autor narra uma década de clandestinidade, onde não via a mulher ou acompanhava o crescimento dos filhos, missões secretas e arriscadas dentro e fora do país, assim como a prisão e a tortura, a sobrevivência à ditadura militar, até sua saída do Partido Comunista Brasileiro.

Marco Antônio trabalhou em jornais de Minas, São Paulo e Goiás. foi também assessor do CNPq e editor-executivo da revista Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP). Faleceu no  dia 21 de novembro de 2015, aos 89 anos.

 

Marco Antônio Tavares Coelho

Confira a entrevista feita por Carolina Maria Ruy em 9 de agosto de 2004

C – Você entrou no partido pelo Socorro Vermelho?

MC – Pelo Socorro não. Isso foi uma desculpa inicial que o Darcy Ribeiro deu. O Socorro Vermelho teve uma importância, mas no fundo era um grupo assim, lateral, de apoio. Quando o Darcy inicialmente me falou, em vez de ele me convidar diretamente para ir para o partido comunista, ele falou do Socorro Vermelho. Eu também topei. Eu também tava a fim de fazer qualquer coisa clandestina contra o regime daquela época. Contra o Estado Novo.

C – Em que ano?

MC – Foi exatamente em 43.

C – Foi o ano em que você foi, pela primeira vez, ao Congresso Nacional dos Estudantes… Como que foi? Era Congresso da UNE?

MC – Congresso da UNE. Era uma época muito complicada porque de um lado o Estado Novo estava chegando ao fim, já tinha tomado algumas posições no sentido da participação na guerra do lado dos Aliados, mas já havia muita resistência entre os estudantes ao governo Getúlio. A coisa era meio contraditória porque de um lado a gente era contra o governo, mas ao mesmo tempo esse governo tomou uma posição correta em relação a guerra. Eu já militava no Partido Comunista e havia a direção, uma direção provisória chamada CNOP (Comissão Nacional de Organização Provisória) que estabeleceu o relacionamento entre os estudantes comunistas que estavam no Congresso, mas eram muito poucos. Tinha, por exemplo, Mario Alves, da Bahia, Carlos Mota, que é vivo até hoje, de São Paulo, foi o Darcy Ribeiro, que tinha sido transferido de Minas aqui para SP. E nós ficamos com assistência da direção nacional. Tínhamos o que se chamava de fração comunista. Éramos poucos e procurávamos conquistar o Congresso levando-o a assumir posturas de acordo com o PC. Nossa ligação era com uma pessoa da direção nacional que, no caso, era o João Amazonas. Nós nos reuníamos quase toda noite ali perto da UNE, recebíamos e dávamos informações sobre a evolução no Congresso e procurávamos seguir orientação da direção nacional. No final do Congresso tínhamos um balanço da situação. Aí houve uma reunião com Diógenes Arruda que era o secretário da comissão nacional. Particularmente quem atuava mais nisso era o Darcy Ribeiro, o Mario Alves, eu e esse Carlos Morta. Era muito confuso por causa da própria desorganização do PC. Haviam muitos comunistas, ou simpatizantes do PC, mas que não concordavam com a CNOP.

Fernando Santana, por exemplo da Bahia. Agora, eu me aproximei muito de uma figura que depois ingressou no partido comunista, que era o vice presidente da UNE e depois assumiu a direção da UNE, Luiz de Carvalho Bicalho. E conseguimos impulsionar uma série de funções políticas dentro da orientação do partido. Mas havia uma certa oposição lá dentro do Congresso e os estudantes começaram a assumir uma atitude contra o governo do Getúlio.

C – O Luiz Bicalho inicialmente era contra o partido. Como ele foi se convencendo de forma a acabar ingressando?

MC – Olha, de um lado ele era, intelectualmente, muito mais competente do que eu. Estudante de filosofia e tal. Ele era mais velho. Eu o respeitava muito do ponto de vista cultural, de formação e tal. Mas ao mesmo tempo ele respeitava os comunistas, porque nós éramos os perseguidos, nós é que estávamos clandestinos. Quer dizer, a organização era clandestina, e isso sempre… há um certo respeito por quem é de uma organização clandestina, naquela situação de repressão, naquele clima em que os comunistas eram perseguidos.

C – Ele devia ser um cara esperto, né? Porque logo que entrou foi para a vice presidência da UNE, depois para a presidência…

MC – É interessante que, no Congresso anterior, ele derrotou o candidato que era apoiado pelos comunistas. Bom, mas o presidente que foi eleito junto com ele, ele era primeiro vice, era daqui de São Paulo, o Helio Mota, e não quis assumir a presidência, então ele assumiu. Agora aconteceu com ele uma coisa muito curiosa, ele foi trabalhar na UNE, os comunistas tinham perdido a eleição, e ele encontrou alguns comunistas no Rio que se dispuseram a ajudá-lo. Então aí ele começou a entender que onde podia obter era entre os comunistas. Quer dizer, na verdade, veja bem, a nossa influência decorria um pouco disso, é porque nós carregávamos o piano. É isso. A gente se impunha pela dedicação àquele trabalho. Isso aconteceu comigo também na União Estadual dos Estudantes. Todo mundo abandonou a entidade, eu era o único que ia na sede, respondia as cartas. Me interessava o fato de eu estar ligado ao partido e me deram como tarefa o seguinte: você tem que atuar dentro da organização. Eram pouquíssimas pessoas, naquele quadro, pouquíssimos estudantes, que estavam dispostos a fazer isso. Eu assistia por exemplo, nas reuniões das organizações dedicadas ao esporte, havia muita participação, as nas entidades políticas não. Era aquele clima de falta de liberdade, despolitização, então eu acabei me impondo pelo trabalho. Não era pelo convencimento, nem pela minha competência política, e sim pelo fato de que eu resolvi carregar o piano.

C – Você falou que, no Congresso, os comunistas eram poucos. Havia conflitos ideológicos em relação a concepção da UNE, para que ela servia?

MC – Bom o que havia era o seguinte, a União Nacional dos Estudantes não tinha a expressão que passou a ter posteriormente. Era uma entidade que tinha sido formada naqueles anos, 37, 38, 39. Outras entidades, outras organizações estudantis tinham muito mais presença, como essa CBDU, Confederação Brasileira de Desportes Universitários, era muito mais atuante, a Casa do Estudantes no Rio de Janeiro, aqui, a Faculdade de Direito, o XI de Agosto. Quer dizer, foi o início de organização do movimento estudantil, em que as entidades não eram reconhecidas, nem pelos próprios estudantes. Os Centros Acadêmicos tinham muito maior força e as organizações estaduais e a própria UNE não. Não tinham recursos. Os Congressos estudantis reuniam no máximo cem pessoas. A organização estudantil tava nascendo. Anteriomente à UNE haviam outras entidades, outras associações estudantis, como a UDE, União Democrática Estudantil, formada pela esquerda, também havia grupos ligados a igreja católica.

C – A UNE nasceu com orientação comunista, então?

MC – Perfeito. Principalmente comunista. Mas aí a oposição do Getúlio começou a trabalhar. Recebemos dinheiro da UDN, um monte de dinheiro, porque eles começaram a apostar na articulação dos comunistas, entre os estudantes, para combater o Getúlio. Eles também estavam desarticulados, a oposição do Getúlio tava desarticulada já nesse período de 42 em diante. Naqueles anos o que preocupava, do ponto de vista político era a guerra. Isso que dominava o noticiário, os jornais giravam em torno da guerra e não em torno da política do Brasil. Isso era o que motivava os estudantes, e todo mundo.

 C- Como era sua atuação na prática, as viagens pelo Brasil, etc?

 MC – Isso foi depois de 52, eu atuava como clandestino. Pouco a pouco eu fui me profissionalizando como um comunista. Comecei a trabalhar em um jornal que nós montamos em Belo Horizonte, Jornal do Povo, como jornalista, comecei a viver a custa do partido, com um salário assim, baixo. Isso a partir principalmente de 47, quando eu comecei a me dedicar de corpo e alma a atividade de organização partidária. Depois de 52 no plano nacional.

C- Em 2947 teve a ilegalidade, com o registro do partido suspenso pelo TSE. Como ficou a Juventude?

MC – Foi também. A União da Juventude Comunista já tinha sido criada, em 45, com estatuto, uma direção própria, uma atuação paralela. Mas ela nunca teve peso. Eu acho que essa experiência da Juventude Comunista era uma experiência internacional. E aqui entre nós eu tenha a impressão que ela nunca teve uma grande expressão política como na Itália, França e outros países. Aqui sempre foi uma atuação dos estudantes comunistas e com interferência do Partido Comunista. O resultado é que acho que muito pouca gente entrou, ou começou sua militância política através da União da Juventude. Era mais uma atuação direta das células do Partido Comunista no movimento estudantil. Uma organização política não pode se formar em um ou dois anos, é todo um processo. Foi criada em 45 e em 47 já estava na clandestinidade, quer dizer, ela foi posta virtualmente. Como era um apêndice do Partido Comunista e passou a ser perseguida também.

C – Você nunca foi da Juventude Comunista?

MC – Não. Era do partido. Eu participei dos festivais juvenis designado pela direção do partido, para organizar a delegação que foi para o festival mundial, que era já uma coisa tradicional. Os festivais tinham muito prestígio porque havia muito interesse em torno dos festivais. E aí eu fui designado para organizar a delegação brasileira, e fui.

C – Você acha que a Juventude Comunista teve importância, no Brasil ou no mundo?

MC – Eu acho que no mundo teve. Eu vi, por exemplo, as organizações italianas e francesas, eram muito poderosas, como também nos países socialistas tinha importância. Agora, aqui, entre nós, nunca chegou a ter. O festival era muito procurado. Com o fim da guerra, havia um interesse enorme em conhecer os países socialistas, e o único caminho para esses contatos internacionais eram esses festivais.

C – Sua esposa era da Juventude Comunista?

MC – Ela era da Juventude. Tentou-se criar em Minas e começou a funcionar durante um certo tempo, apoiados principalmente nos estudantes. Tinha organizações em poucas cidades, principalmente nas capitais. Eu mesmo durante um certo tempo comecei a articular a organização dos estudantes colegiais que não existiam. Fiquei encarregado de uma base de estudantes colegias e dava uma assistência. E conseguimos muita coisa por iniciativa nossa, como criar essa organização dos estudantes secundários em Belo Horizonte. A semente que nós lançamos, a formação inicial se deve a essa atividade, a nós. E ela ganhou força, se transformou e tornou-se um braço muito importante do movimento estudantil, que não existia. Isso em 1944, 45.

C – Sendo que sua mulher foi da Juventude Comunista. Você pode falar de como era a situação da mulher nessas organizações políticas, se havia machismo?

MC – Havia, no caso de Belo Horizonte, até 52, quando eu parei de ter contato diretamente com os estudantes, havia muito interesse de algumas mulheres. Não eram centenas, mas era um grupo e muito atuante que procuravam fazer uma série de campanhas paralelas. Por exemplo, na campanha pela proibição das armas atômicas, a garotada participou intensamente, inclusive as mulheres. Machismo tinha, claro que tinha, mas ao mesmo tempo as vezes elas davam demonstração de maior atividade que os homens. As moças eram muito dedicadas. Um grupo restrito, mas muito dedicadas.

C – Você conheceu o Prestes?

MC – Até 56 eu conhecia a distância. Depois de 56 é que eu passei a privar mais diretamente com ele.

C – E como ele era, assim, pessoalmente?

MC – Olha, eu pensei muito antes de escrever o que eu escrevi sobre o Prestes. Eu achei que precisava de ter uma atitude muito responsável e cuidadosa, porque pessoalmente eu nunca tive uma relação afetiva com ele. É claro, a distância ele já era um mito, e esse contato com ele já mais estreito, mais perto… nesse período de 56 já estavam muito evidentes os erros políticos dele. Mas eu procurei analisar isso com cuidado porque eu noto que certas pessoas que privaram com o Prestes tem de um lado um juízo que é aquela admiração, aquela veneração. Vê, o Oscar Niemayer continua pensando sobre o Prestes como ele pensava a cinquenta anos atrás, “o cavaleiro da esperança”. Por outro lado outras pessoas tem uma atitude de crítica acirrada contra o Prestes. Se você pegar o livro do Gorender, aquele Combate nas Trevas, a gente vê a carga acirrada que ele tem com o Prestes. Isso me levou a procurar ter uma visão equilibrada sobre o Prestes. Porque exatamente eu não tenho simpatia por ele. É preciso se fazer um juízo muito justo, não se deixar levar, as vezes, por certas coisas que não levam a uma compreensão sobre o Prestes, o papel que ele desempenhou. Eu chamo sempre a atenção para uma coisa, eu assisti várias vezes, reuniões de Prestes com altas figuras do país. Pessoas adversárias dele, que não eram comunistas, tipo San Tiago Dantas, todos reverenciando o Prestes. O Presidente da República, João Goulart, todos. Por que? Aí acontece que, numa reunião, tem uma pessoa que não é gente, é um mito. O resultado é que o relacionamento é muito difícil com esse mito. Uma coisa muito curiosa, por exemplo, é que Prestes queria ser um homem igual aos outros, e não era, não conseguia. Eu via ele saindo, quando ele tava legal no Rio de Janeiro, era uma hora de felicidade pro Prestes pegar uma criança, filha dele, ir na esquina comprar bala. Ele nunca teve isso, nunca teve a oportunidade de conviver com os filhos, nunca teve uma vida privada, e ele sempre foi acatado como um oráculo, então fica muito difícil. O julgamento de um homem como esse não pode, por exemplo, ter como dado fundamental, certos erros que ele cometia, frequentemente, vários erros, muitas injustiças que ele praticava. É o mesmo caso: se entrar aqui o Fidel Castro, ninguém vai tratá-lo como tratam o presidente da Argentina, o presidente do México, vai tratar como um mito da vida internacional. É um outro mundo.

C – Como foi entre os comunistas, na prática, a crise provocada pelo XX Congresso da PCUS?

 MC – Eu já sentia que certas coisas estavam mal explicadas internacionalmente. A partir de 54 vários erros do Partido Comunista ficaram evidentes. Eu estava em Pernambuco, em 54, e nós estávamos fazendo uma campanha acirrada contra o Getúlio. Aí vieram os acontecimentos de agosto. A grande massa da população brasileira se levantou, o suicídio do Getúlio despertou uma revolta, um sentimento de apoio ao Getúlio de cima a baixo. Nós comunistas havíamos contribuído. Havíamos até então feito uma campanha acirrada contra o Getúlio. Essa contradição começou a despertar entre os comunistas a sensação de que nossa política tava toda errada. Começou. Além disso começam a surgir crises nos países socialistas. Um fato por exemplo me chamou a atenção muito fortemente, que nós tínhamos feito uma campanha, muito grande, contra a Yugoslávia. Tito, né? Esses homens, com liderança do Tito, são apresentados ao mundo como renegados, traidores. Passado algum tempo, três quatro anos, Kruschov e os maiores dirigentes do PCUS, vão à Belgrado e fazem as maiores homenagens a Tito e aos comunistas yugoslavos. Quando eu vi aquilo eu falei, mas que coisa, isso é um absurdo. Como? Esses que foram a dois anos atrás considerados como renegados, assassinos, traidores, agora são homenageados da forma mais solene e enfática possível? Então tem qualquer coisa aqui que não funciona. Erros no plano nacional e internacional. Aí aparece o relatório de Kruschov denunciando os crimes. Stalin era um deus para nós! Imagina como seria para os religiosos se o papa aparece dizendo que tudo o que se disse até hoje, que deus existe, Nossa Senhora, uma santa virgem e pura, santíssima trindade, isso é falso, não existe. Imagina que confusão! Foi o que aconteceu conosco. Aí começavam a surgir posições desesperadas. Um homem como Agildo Barata, me lembro bem dele, um velho revolucionário, vem e faz publicamente as piores acusações possíveis. Toda uma parcela importante da intelectualidade comunista se afasta. A direção do PC se encolhe esmagada por aquelas acusações. Cada um adotou uma conduta de denunciar, de se afastar, de procurar defender de qualquer maneira o que era indefensável. Naquela fase eu resolvi parar para estudar, e a partir dos clássicos. Pegar O Capital e começar a rever tudo. Essa foi a minha atitude, facilitada pelo fato de eu estar numa atividade ultraclandestina e com uma disponibilidade de tempo muito grande.

C – O partido rachou nessa situação.

 MC – De cima a baixo.

C – João Amazonas, Pomar e Arruda formaram uma liderança. E como eram esses três?

 MC – Esses três e mais outros. Maurício Grabois Também e tal. Ainda hoje eu acho que nós fizemos a análise correta deles. Quer dizer, eles resolveram não fazer a auto crítica. hoje eu sinto coisas diferentes no PcdoB, mas a resistência deles de compreender os erros é profunda. É claro que pouco a pouco entre eles, começaram a reformular. Hoje a gente vê que não estão mais presos àqueles dogmas. Mas… não digo que eles foram os últimos, porque depois surgiram outros grupos como o PSTU que mantém essas posições na esquerda, mas aí já é uma outra geração, que na minha opinião, discutível essa opinião, não vem da realidade, e estão presos a certas coisas que envelheceram no marxismo, que precisam ser reexaminadas por aqueles que querem modificar a sociedade.

C – Como era o Marighela? Nesta situação ele ficou do lado do Prestes…

MC – O Marighela é uma das figuras mais interessantes. Um jovem revolucionário, muito inteligente, muito carismático, uma pessoa de excelente caráter, muito corajoso. Nunca foi um homem muito estudioso, mas muito inteligente e capaz de demonstrar grande dedicação à luta. É muito difícil a gente situar esses homens hoje porque o quadro é muito diferente.

Marighela surge nas lutas de 32, 33, 34, quando o Brasil era outro, muito diferente do que é hoje. Então um jovem estudante inteligente, competente, que brilha em Salvador de uma forma espantosa, aglutinando pessoas e dando o exemplo pessoal de uma grande combatividade. Esse foi o Marighela.

 C- As pessoas falam com muita admiração dele.

MC – É. Quem não admirou o Marighela? Mas ao mesmo tempo, se você pegar o que ele escreveu, é muito fraco. Ele não tinha um lastro teórico. O lastro teórico dele era muito reduzido. Ele era mais um homem de ação.

C – Você conheceu Armênio Guedes?

 MC – Sim , até hoje… Um homem danado de inteligente, com uma capacidade de análise surpreendente. Sinceramente eu acho que de todos os dirigentes comunistas ele foi, e é, o homem de maior visão política, muito voltado para a realidade, sempre muito estudioso, com uma cultura muito grande, solidificada. O defeito do Armênio é que ele escreve com muita dificuldade, ele quase não escreve. Não tem textos, ele não deixa, é um inferno, ele podia dar contribuições excepcionais, muita maiores que as minhas, por exemplo. Ele acabará não sendo reconhecido pela posteridade porque é muito difícil resgistrar as opiniões dele. Estão dispersas num ou noutro trabalho. Ele sempre foi um homem que influenciou outras pessoas, inclusive o meu caso, sem deixar registradas certas opiniões fundamentais da luta política.

C – E quem era o Armando Ziller, muito ligado a você no partido?

 MC – Bancário de Banco do Brasil. Primeiro começou a atuar em Santos, no movimento sindical, depois em Curitiba, sempre no movimento sindical. Depois se transforma num elemento muito ligado ao Partido Comunista, por onde ele atuava. Não havia fronteiras muito rígidas entre o Partido Comunista e o movimento sindical, mas ele sempre foi um homem dedicado a luta sindical. Muito estudioso, é uma coisa curiosa como a formação pessoal leva hora pra um certo sentido, como no caso do Marighela, que não tinha muita base teórica porque era um homem de massa, não muito dedicado ao estudo, embora extremamente inteligente. Já o Armando é formado numa luta religiosa intensa. O pai dele era um padre italiano, rompe com a igreja e se transforma numa liderança religiosa, protestante, metodista, se não me engano, e vive dentro de um clima de intensa discussão religiosa e cultural. Essa foi a formação do Ziller. Em 44 ele propôs organizarmos em Belo Horizonte um círculo de estudos, que nós fazíamos semanalmente, sob a liderança dele. Ele conseguiu, com muita dificuldade, um livro do Engels, O Fim da Filosofia Clássica, e discutia conosco. Na verdade ele ministrava aulas pra nós, pra mim mais e dois ou três dirigentes comunistas, operários que não entendiam patavidas daquilo. O único que acabava se aproveitando daquilo foi eu. Estimulando assim o estudo.

C – Como que era essa orientação ideológica do partido? Era desse jeito informal ou era uma coisa mais estruturada?

MC – Não. Lá em Minas o partido era muito fraco. Eu sei que na Bahia era diferente. Pelo que o próprio João Falcão escreveu. Na Bahia eles estavam em outro nível do ponto de vista de formação. Em Minas era fraquíssimo.

C – Mas tinham os cursos, tipo Curso Stalin…

 MC – Isso depois, isso já é a partir de 52. Isso que eu citei do Ziller foi 44, 45. Até 47 houve um ou outro curso, ainda na legalidade, mas não prosperaram. A  partir de 52 sim, aí começaram as aulas. Eu mesmo logo comecei a participar como aluno e depois como professor.

C – Nos anos 30 e 40 a formação dos militantes era assim

MC – Era extremamente débil. Inclusive não tinha literatura, pra gente conseguir um livro era um problema porque era proibido. Quem tivesse um livro desses tava perdido. Passou a ser um crime a publicação de certos livros, então não havia literatura. O livro que causou a maior sensação em 44 por exemplo foi sobre a URSS, O Poder Soviético, da igreja Anglicana, que contava como era a União Soviética. Até então o que havia era uma feroz campanha anti soviética, anti comunista.

C – Mas como vocês viam a URSS, se mesmo com essa campanha ainda eram do partido?

MC – O que nos impressionava eram os fatos ocorridos durante a guerra. Quando começa a guerra vai ficando evidente a resistência da população soviética, a luta do povo russo contra o nazismo. Era vista como um país atrasado, que não havia democracia, um país miserável onde muita gente morria de fome, e aí passou a ser um país com uma capacidade de luta impressionante, e veio a despertar um apoio e uma admiração muito grande.

C – Eu queria que você falasse um pouco de como eram esses cursos tipo Curso Stalin.

MC – Nós tínhamos cursos de vários níveis. Cursos de dois dias, de quatro dias, de uma semana. Esse curso Stalin começou como um curso de quinze, vinte dias e foi até um mês. Então tinha aulas sobre a linha política, preparadas pela direção, leituras dos documentos do partido, aulas sobre trabalho sindical, trabalho com as mulheres. E muito debate, né? Tinha uma técnica: tinha uma exposição do professor de umas três horas, na parte da tarde os alunos eram divididos em círculos de estudo e a noite uma sabatina em torno daquelas questões. Era pesado.

 C – Você fala, no seu livro, de aulas do Arruda. Como ele era?

 MC – Olha, ele era um homem inteligente, mas ao mesmo tempo muito autoritário e ele queria se impor de qualquer maneira. Ele não despertava a simpatia que outros dirigentes, como no caso do Marighela, principalmente, mas também o Amazonas. O Amazonas era muito respeitado, era muito sério, e de uma conduta que não nos levava a uma critica, pelo contrário, ele tinha uma belíssima capacidade de esclarecimento, uma seriedade pessoal também muito grande. O Arruda era um homem capaz de cometer desatinos e agressões às pessoas constantemente. Inteligente, sem dúvida, e um grande organizador, um grande mobilizador, vamos dizer assim. Mas pouco a pouco ia se compreendendo que ele era um homem que não merecia muita confiança, assim do ponto de vista de caráter. Não que ele cometesse erros graves não, mas é nesse relacionamento pessoal que você vai conhecendo as pessoas.

C – Como você vê a UNE hoje?

MC – Eu acho que a posição da UNE tá totalmente fora da realidade. Desde que passaram a ser manipulados pelo PCdoB eles atuam não de acordo com a realidade dos estudantes. Assumem um papel em determinadas posições políticas e levam a UNE a ser um instrumento de um grupo muito restrito de estudantes. Por exemplo, você não vê a UNE envolvida num debate sobre questões que interessam mais aos estudantes, questões vitais. Eles estão muito mais preocupados com determinadas posições políticas de um determinado grupo. Por exemplo, qual atuação da UNE na reforma das universidades? Nenhuma. Mas tão aí preocupados em fazer uma campanha de apoio ao Chávez lá na Venezuela. Não é que não se possa fazer também isso, mas é que as questões dos estudantes brasileiros não são examinadas, não há uma movimentação. Eu acho que eles estão muito alienados da realidade dos estudantes.

C – Você acha que, em relação ao que era no começo, houve alguma evolução, uma continuidade, algo assim?

MC – Eu acho que isso sempre foi um defeito da UNE, girar mais em torno de questões políticas, fora do movimento estudantil. Vem de uma orientação sectária. É claro, por exemplo, que com a ditadura, naquele período inicial, de 64, essa atitude combativa da UNE se justificava. Se justificava pela repressão violenta. Mas continuar girando em torno disso, de certas questões estritamente políticas, leva a se tornar uma entidade que não se movimenta em torno de problemas cruciais para os estudantes. Por exemplo, aqui na FEA, há uma movimentação dos estudantes incrível em torno das empresas juniors, porque aquilo é vital para os estudantes, para o aprendizado deles. Você vê ali na FEA uma grande atuação deles com os cursinhos. Aqueles estudantes estão voltados para sua formação profissional, como estudante. E por que não há debates assim a respeito dos caminhos da universidade? A busca de caminhos para vencer certos desafios? As atitudes que tomaram nessa greve. Um absurdo! Agora, veja bem, é um pequeno grupo. A grande massa não se movimenta em torno disso. Acho portanto que há sim uma atuação não de acordo com a realidade dos próprios estudantes. As vezes há uma movimentação. Essa luta que houve na Bahia, por exemplo, em torno da passagem dos ônibus, isso sim interessa aos estudantes, é uma luta que movimentou Salvador. Eu penso que se houvesse uma grande mobilização da UNE em torno da ampliação de bolsas de estudo, exigir do governo uma ampliação daquelas medidas que vão permitir ampliar a frequencia das matrículas nas universidades. Eu não sei se eu tô defasado, se é uma atitude intransigente minha em relação a essas posturas… Por exemplo, eu assisti no mês passado a ida de quase cinquenta estudantes daqui para a região do São Francisco, em torno de um conto do Guimarães Rosa.

C – Lá para o Morro da Garsa

MC – Pro Morro da Garsa, e também Três Marias, e etc. Quer dizer, eu levei um susto quando vi aquilo, a participação de tantos estudantes da USP em realizações culturais. Então eu acho que a própria atuação cultural… a UNE não tem nada a ver com essa atuação cultural, não tá voltada para isso, não estimula isso. Por que as entidades estudantis não atuam nisso? Uma coisa maravilhosa. Há uma postura errada, se considera uma atividade dessa não política. É político fazer uma campanha de apoio ao presidente da Venezuela e batalhar em torno disso? Em realizações culturais as entidades poderiam ser muito mais fortes se compreendessem que é um caminho fundamental para a politização, porque tudo ganha um sentido político. Talvez eu possa estar errado…

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